Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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sábado, maio 28, 2005

Eu, assassino

Ano de 1958.
Vivia eu na zona das Antas, bem perto do desaparecido estádio.
Andava na 3ª classe.

Um dos meus colegas era o Renato, filho único do Sr. Serafim e da D. Laura que viviam bem pertinho da escola.
Esta família era bem nossa conhecida pois costumava ir veranear para Vila Praia de Âncora, alojando-se no hotel de minha tia Bela (na altura pensão).
Uma outra família do Porto, a do Sr. Oliveira, bastante mais íntima, também costumava ir a banhos para lá.

Nós, porque minha mãe era natural dessa vila piscatória situada dezasseis quilómetros a norte de Viana do Castelo, obviamente. Não só no verão mas no Natal, na Páscoa, enfim, sempre que havia oportunidade. Nós éramos: o narrador, quero dizer, eu, meus pais e minha irmãzita dois anos mais nova.
E ainda o meu primo Zé, segundo filho da tia Bela.

Eis o conjunto de protagonistas principais desta história.
Chegados a este ponto, não quero deixar de vos chamar a atenção para dois aspectos.
O primeiro, o de esta narrativa ser absolutamente verídica, inclusivamente os nomes utilizados. Fiz essa opção, desta vez.
O segundo, é que se estão a contar com uma novela policial, bem podem tirar o cavalinho da chuva. Nesse tipo de literatura o assassino só se descobre no fim, depois de o autor ter posto o leitor a suspeitar de quasi todos os personagens. Não posso deixar de recordar os imensos romances que li da famosa Agatha Christie em que o Hercule Poirot ou a Miss Marple, nomeadamente, me faziam só largar o livro depois de ter chegado ao fim.
Mas, neste caso, não há nenhum suspense. Já sabem quem é o assassino.
Sou eu!
Vamos então à história propriamente dita:
Durante uma certa semana, o Renato não apareceu nas aulas. Estará doente, pensei. Chegou-se a sexta-feira e, mal chego ao edifício escolar, começo a ouvir:
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
Logo fiquei bem aborrecido pois, saber assim de supetão da morte de uma pessoa conhecida, e sobretudo com nove anitos, não deixa de ser um tanto traumatizante.
A aula decorreu de forma um pouco esquisita, pelo menos foi o que me pareceu e, terminadas as lições do dia, fui para casa almoçar.
A minha mãe abre-me a porta e eu disparo de imediato:
- Ó mamã! Morreu o pai do Renato!
- O Sr. Serafim? Não me digas! Como é que soubeste?
- Toda a gente na escola falava disso.
- Coitado! E de que é que morreu?
- Ouvi dizer que tinha sido de leucemia – apliquei-me a dizer uma palavra tão cara e que me dera algum trabalho a decorar.
- Ah! Realmente ele sempre teve uma cor muito malicenta – comentou, inteligentemente, a mamã. Passados uns minutos chega o meu pai.
- Ó rapaz! E sabes quando é que ele faleceu? – perguntou-me ele.
- Ouvi dizer que na 5ª feira. E o enterro foi hoje de manhã.
- Então já foi o funeral! Agora só nos resta ir apresentar as condolências à viúva – decide rapidamente o papá.
- E temos de avisar as pessoas – decide, de novo rapidamente, como era seu hábito.
E assim, a infausta notícia, ao início da tarde de sexta-feira propaga-se velozmente.
Telefonema para aqui, telefonema para ali, ficou combinado que no domingo, depois do jogo do Porto, o Sr. Oliveira referido no início viria a nossa casa, bem como o meu primo Zé, que estava a estudar Economia (melhor seria chamar-lhe Gastadoria), vindo este, como habitualmente, almoçar connosco.
E assim chegamos a domingo.
Pouco antes da hora de comer, toca a campainha.
É o Zé. Grande calmeirão, um verdadeiro senhor-de-não-te-rales, que quando ficava atrapalhado gaguejava um pouco.
Aberta a porta, diz ele:
- Sabem que ontem à tarde ia morrendo de susto? – solavanqueou .
- Mas porquê? – pergunta o pai.
- Vi o morto a passear em Santa Catarina – desabafa o coitado, ainda visivelmente afectado pela visão de um morto-vivo.
- Mas como é possível? Ele está vivo? Tu tens a certeza que ouviste bem? – atira-me o pai com cara de poucos amigos.
- Ouvi! Todos diziam “morreu o pai do Renato”.
- Bom! Vamos tirar isso a limpo. Ó mulher! Chega-me daí a lista telefónica! – ordena o chefe da família.
E passado um pouco, está o meu pai a falar ao telefone com o morto-vivo, arranjando um pretexto qualquer para tão inopinado contacto.
Enfim, estava tudo esclarecido!
Tudo, não! Afinal porque é que toda a malta da escola dizia que tinha morrido o pai do Renato? Isso já seria mistério para eu desvendar.
O resto do dia decorreu com a normalidade de um domingo de futebol. O Porto ganhou, o que era sempre bom para os humores estarem do lado positivo,
Ah…já agora fiquem a saber que o Sr. Oliveira não tinha sido avisado de que o morto afinal estava vivo, pelo que depois do jogo apareceu vestido de escuro e gravata preta.
- Ó amigo! Afinal o Serafim está vivo! – dizia o meu progenitor.
- Como? – balbuciou o Oliveira com a maior cara de parvo que se pode fazer.
E lá lhe contaram a história.
Afinal, a “morte” do Serafim tinha dado azo, não a uma romagem a casa da "viúva", com lágrimas e lamentações, mas a umas boas risadas.
Na segunda-feira, perguntei a uns colegas se o pai do Renato Nuno sempre tinha morrido. Não! Afinal tinha sido o de um outro Renato, de que eu nunca ouvira falar e que vivia numa área um pouco afastada da minha casa, mas que era bem conhecido de muito alunos que viviam para esses lados, embora fosse mais velho e não andasse naquela escola.
Estão agora a perceber como é que eu, durante quasi quarenta e oito horas, fui o “assassino” de um pacato cidadão?

17 Comments:

Blogger Mitsou said...

Que maravilha! Adorei. E já sabes, que venha a próxima! Beijinhos muitos, assassino de neuras e telhas :))

7:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Na minha terra, temos um provérbio: "morte anuncaida, vida acrescentada". Com isso, deste mais uns anos de vida a esse senhor! LOL ;)

11:38 da tarde  
Blogger V. said...

Obrigada pela passagem pelo Ilhas e Mar... Volte sempre que quiser!
Obrigada pela flor e pelo beijinho...

5:30 da manhã  
Blogger António said...

Para Caiê:
Não é só na tua terra; na minha também.
E, já agora, posso-te dizer que muito pouco tempo depois falecia a D. Laura, mulher da minha vítima, devido a doença prolongada, como se costuma dizer eufemisticamente.
E o Sr. Serafim, delegado de Propaganda Médica, viúvo inconsolável durante muitos anos, acabou por casar de novo e ainda viveu muito tempo. Penso que agora já terá falecido! O provérbio não prevê a imortalidade...eh eh eh

6:35 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Mas não houve quem te aplicasse um valente de um castigo?Deliciosa a tua história.E obrigada, espero que também aches que fica melhor.Eu cá acho ouro sobre azul.

12:20 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pois é... O mesmo se passou com os meus avós. Ao meu, avô deram várias vezes os pêsames pela morte da mulher e ela viveu mais 20 anos do que ele!...

1:02 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Só tu para nos trazeres uma historia destas...
É mesmo 'diz que disse'...
Ai, português, português!

2:08 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

a tua casinha blog?
ou a tua casinha, edifício?

2:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Um rumor pode ser transformado numa catástrofe. Ou naquilo que quisermos. É verdade que este propagaste-o inadvertidamente.
Eis mais uma história com sentido e muito bem escrita como é apanágio do meu amigo António, que de louco nada tem.
Um abraço fraterno e amigo

5:38 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Sendo assim, informo que não teve arquitecto, mas teve designer!
TAs com sorte, os servidores de blogs têm designers para idealizar as páginas...

6:32 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Uma estória magnífica, mais uma vez.
Olha lá, eu quando aqui venho sou sempre Dora, nunca escrevi nada como "Anónima", ok? ;-)

6:32 da tarde  
Blogger Viuva Negra said...

confesso que no inicio penzei que irias ser acusado do assassinato de uma minhoca ou quiça de um bicho de conta, mas assim o caso muda de figura hehehehehh!!!! deve ter sido giro ...

11:14 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

É o que dão os rumores!! lol
De certeza que para a próxima os teus pais te pediram um atestado de óbito! ;)

Xinhos

3:04 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Caí!
BShell

4:43 da tarde  
Blogger Pipocas said...

Qual morto qual quê... fugiu mas é! (isto foi o que a minha má língua pensou logo de início). É o que faz o diz que disse... Juntem isso à velocidade da luz e temos uma boato do tamanho do mundo.
;)

10:39 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Mas que "boateiro"...afinal podias ter seguido Ciencias da Informação
que estavas mesmo no sítio certo.

Continua António!

Beijinhos

10:48 da tarde  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

António

As tuas histórias são de facto incríveis, além de muito bem contadas, deixam-me sempre bem disposta, tem que sair sempre uma gargalhada. Mesmo sendo tu um "assassino"

Como tive um fim de semana longo, mas passado fora, ainda não terminei o meu conto, mas está quase, quase. :-)

Beijos

1:07 da manhã  

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