Eu, assassino
Ano de 1958.
Vivia eu na zona das Antas, bem perto do desaparecido estádio.
Andava na 3ª classe.
Um dos meus colegas era o Renato, filho único do Sr. Serafim e da D. Laura que viviam bem pertinho da escola.
Esta família era bem nossa conhecida pois costumava ir veranear para Vila Praia de Âncora, alojando-se no hotel de minha tia Bela (na altura pensão).
Uma outra família do Porto, a do Sr. Oliveira, bastante mais íntima, também costumava ir a banhos para lá.
Nós, porque minha mãe era natural dessa vila piscatória situada dezasseis quilómetros a norte de Viana do Castelo, obviamente. Não só no verão mas no Natal, na Páscoa, enfim, sempre que havia oportunidade. Nós éramos: o narrador, quero dizer, eu, meus pais e minha irmãzita dois anos mais nova.
E ainda o meu primo Zé, segundo filho da tia Bela.
Eis o conjunto de protagonistas principais desta história.
Chegados a este ponto, não quero deixar de vos chamar a atenção para dois aspectos.
O primeiro, o de esta narrativa ser absolutamente verídica, inclusivamente os nomes utilizados. Fiz essa opção, desta vez.
O segundo, é que se estão a contar com uma novela policial, bem podem tirar o cavalinho da chuva. Nesse tipo de literatura o assassino só se descobre no fim, depois de o autor ter posto o leitor a suspeitar de quasi todos os personagens. Não posso deixar de recordar os imensos romances que li da famosa Agatha Christie em que o Hercule Poirot ou a Miss Marple, nomeadamente, me faziam só largar o livro depois de ter chegado ao fim.
Mas, neste caso, não há nenhum suspense. Já sabem quem é o assassino.
Sou eu!
Vamos então à história propriamente dita:
Durante uma certa semana, o Renato não apareceu nas aulas. Estará doente, pensei. Chegou-se a sexta-feira e, mal chego ao edifício escolar, começo a ouvir:
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
Logo fiquei bem aborrecido pois, saber assim de supetão da morte de uma pessoa conhecida, e sobretudo com nove anitos, não deixa de ser um tanto traumatizante.
A aula decorreu de forma um pouco esquisita, pelo menos foi o que me pareceu e, terminadas as lições do dia, fui para casa almoçar.
A minha mãe abre-me a porta e eu disparo de imediato:
- Ó mamã! Morreu o pai do Renato!
- O Sr. Serafim? Não me digas! Como é que soubeste?
- Toda a gente na escola falava disso.
- Coitado! E de que é que morreu?
- Ouvi dizer que tinha sido de leucemia – apliquei-me a dizer uma palavra tão cara e que me dera algum trabalho a decorar.
- Ah! Realmente ele sempre teve uma cor muito malicenta – comentou, inteligentemente, a mamã. Passados uns minutos chega o meu pai.
- Ó rapaz! E sabes quando é que ele faleceu? – perguntou-me ele.
- Ouvi dizer que na 5ª feira. E o enterro foi hoje de manhã.
- Então já foi o funeral! Agora só nos resta ir apresentar as condolências à viúva – decide rapidamente o papá.
- E temos de avisar as pessoas – decide, de novo rapidamente, como era seu hábito.
E assim, a infausta notícia, ao início da tarde de sexta-feira propaga-se velozmente.
Telefonema para aqui, telefonema para ali, ficou combinado que no domingo, depois do jogo do Porto, o Sr. Oliveira referido no início viria a nossa casa, bem como o meu primo Zé, que estava a estudar Economia (melhor seria chamar-lhe Gastadoria), vindo este, como habitualmente, almoçar connosco.
E assim chegamos a domingo.
Pouco antes da hora de comer, toca a campainha.
É o Zé. Grande calmeirão, um verdadeiro senhor-de-não-te-rales, que quando ficava atrapalhado gaguejava um pouco.
Aberta a porta, diz ele:
- Sabem que ontem à tarde ia morrendo de susto? – solavanqueou .
- Mas porquê? – pergunta o pai.
- Vi o morto a passear em Santa Catarina – desabafa o coitado, ainda visivelmente afectado pela visão de um morto-vivo.
- Mas como é possível? Ele está vivo? Tu tens a certeza que ouviste bem? – atira-me o pai com cara de poucos amigos.
- Ouvi! Todos diziam “morreu o pai do Renato”.
- Bom! Vamos tirar isso a limpo. Ó mulher! Chega-me daí a lista telefónica! – ordena o chefe da família.
E passado um pouco, está o meu pai a falar ao telefone com o morto-vivo, arranjando um pretexto qualquer para tão inopinado contacto.
Enfim, estava tudo esclarecido!
Tudo, não! Afinal porque é que toda a malta da escola dizia que tinha morrido o pai do Renato? Isso já seria mistério para eu desvendar.
O resto do dia decorreu com a normalidade de um domingo de futebol. O Porto ganhou, o que era sempre bom para os humores estarem do lado positivo,
Ah…já agora fiquem a saber que o Sr. Oliveira não tinha sido avisado de que o morto afinal estava vivo, pelo que depois do jogo apareceu vestido de escuro e gravata preta.
- Ó amigo! Afinal o Serafim está vivo! – dizia o meu progenitor.
- Como? – balbuciou o Oliveira com a maior cara de parvo que se pode fazer.
E lá lhe contaram a história.
Afinal, a “morte” do Serafim tinha dado azo, não a uma romagem a casa da "viúva", com lágrimas e lamentações, mas a umas boas risadas.
Na segunda-feira, perguntei a uns colegas se o pai do Renato Nuno sempre tinha morrido. Não! Afinal tinha sido o de um outro Renato, de que eu nunca ouvira falar e que vivia numa área um pouco afastada da minha casa, mas que era bem conhecido de muito alunos que viviam para esses lados, embora fosse mais velho e não andasse naquela escola.
Estão agora a perceber como é que eu, durante quasi quarenta e oito horas, fui o “assassino” de um pacato cidadão?
Vivia eu na zona das Antas, bem perto do desaparecido estádio.
Andava na 3ª classe.
Um dos meus colegas era o Renato, filho único do Sr. Serafim e da D. Laura que viviam bem pertinho da escola.
Esta família era bem nossa conhecida pois costumava ir veranear para Vila Praia de Âncora, alojando-se no hotel de minha tia Bela (na altura pensão).
Uma outra família do Porto, a do Sr. Oliveira, bastante mais íntima, também costumava ir a banhos para lá.
Nós, porque minha mãe era natural dessa vila piscatória situada dezasseis quilómetros a norte de Viana do Castelo, obviamente. Não só no verão mas no Natal, na Páscoa, enfim, sempre que havia oportunidade. Nós éramos: o narrador, quero dizer, eu, meus pais e minha irmãzita dois anos mais nova.
E ainda o meu primo Zé, segundo filho da tia Bela.
Eis o conjunto de protagonistas principais desta história.
Chegados a este ponto, não quero deixar de vos chamar a atenção para dois aspectos.
O primeiro, o de esta narrativa ser absolutamente verídica, inclusivamente os nomes utilizados. Fiz essa opção, desta vez.
O segundo, é que se estão a contar com uma novela policial, bem podem tirar o cavalinho da chuva. Nesse tipo de literatura o assassino só se descobre no fim, depois de o autor ter posto o leitor a suspeitar de quasi todos os personagens. Não posso deixar de recordar os imensos romances que li da famosa Agatha Christie em que o Hercule Poirot ou a Miss Marple, nomeadamente, me faziam só largar o livro depois de ter chegado ao fim.
Mas, neste caso, não há nenhum suspense. Já sabem quem é o assassino.
Sou eu!
Vamos então à história propriamente dita:
Durante uma certa semana, o Renato não apareceu nas aulas. Estará doente, pensei. Chegou-se a sexta-feira e, mal chego ao edifício escolar, começo a ouvir:
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
Logo fiquei bem aborrecido pois, saber assim de supetão da morte de uma pessoa conhecida, e sobretudo com nove anitos, não deixa de ser um tanto traumatizante.
A aula decorreu de forma um pouco esquisita, pelo menos foi o que me pareceu e, terminadas as lições do dia, fui para casa almoçar.
A minha mãe abre-me a porta e eu disparo de imediato:
- Ó mamã! Morreu o pai do Renato!
- O Sr. Serafim? Não me digas! Como é que soubeste?
- Toda a gente na escola falava disso.
- Coitado! E de que é que morreu?
- Ouvi dizer que tinha sido de leucemia – apliquei-me a dizer uma palavra tão cara e que me dera algum trabalho a decorar.
- Ah! Realmente ele sempre teve uma cor muito malicenta – comentou, inteligentemente, a mamã. Passados uns minutos chega o meu pai.
- Ó rapaz! E sabes quando é que ele faleceu? – perguntou-me ele.
- Ouvi dizer que na 5ª feira. E o enterro foi hoje de manhã.
- Então já foi o funeral! Agora só nos resta ir apresentar as condolências à viúva – decide rapidamente o papá.
- E temos de avisar as pessoas – decide, de novo rapidamente, como era seu hábito.
E assim, a infausta notícia, ao início da tarde de sexta-feira propaga-se velozmente.
Telefonema para aqui, telefonema para ali, ficou combinado que no domingo, depois do jogo do Porto, o Sr. Oliveira referido no início viria a nossa casa, bem como o meu primo Zé, que estava a estudar Economia (melhor seria chamar-lhe Gastadoria), vindo este, como habitualmente, almoçar connosco.
E assim chegamos a domingo.
Pouco antes da hora de comer, toca a campainha.
É o Zé. Grande calmeirão, um verdadeiro senhor-de-não-te-rales, que quando ficava atrapalhado gaguejava um pouco.
Aberta a porta, diz ele:
- Sabem que ontem à tarde ia morrendo de susto? – solavanqueou .
- Mas porquê? – pergunta o pai.
- Vi o morto a passear em Santa Catarina – desabafa o coitado, ainda visivelmente afectado pela visão de um morto-vivo.
- Mas como é possível? Ele está vivo? Tu tens a certeza que ouviste bem? – atira-me o pai com cara de poucos amigos.
- Ouvi! Todos diziam “morreu o pai do Renato”.
- Bom! Vamos tirar isso a limpo. Ó mulher! Chega-me daí a lista telefónica! – ordena o chefe da família.
E passado um pouco, está o meu pai a falar ao telefone com o morto-vivo, arranjando um pretexto qualquer para tão inopinado contacto.
Enfim, estava tudo esclarecido!
Tudo, não! Afinal porque é que toda a malta da escola dizia que tinha morrido o pai do Renato? Isso já seria mistério para eu desvendar.
O resto do dia decorreu com a normalidade de um domingo de futebol. O Porto ganhou, o que era sempre bom para os humores estarem do lado positivo,
Ah…já agora fiquem a saber que o Sr. Oliveira não tinha sido avisado de que o morto afinal estava vivo, pelo que depois do jogo apareceu vestido de escuro e gravata preta.
- Ó amigo! Afinal o Serafim está vivo! – dizia o meu progenitor.
- Como? – balbuciou o Oliveira com a maior cara de parvo que se pode fazer.
E lá lhe contaram a história.
Afinal, a “morte” do Serafim tinha dado azo, não a uma romagem a casa da "viúva", com lágrimas e lamentações, mas a umas boas risadas.
Na segunda-feira, perguntei a uns colegas se o pai do Renato Nuno sempre tinha morrido. Não! Afinal tinha sido o de um outro Renato, de que eu nunca ouvira falar e que vivia numa área um pouco afastada da minha casa, mas que era bem conhecido de muito alunos que viviam para esses lados, embora fosse mais velho e não andasse naquela escola.
Estão agora a perceber como é que eu, durante quasi quarenta e oito horas, fui o “assassino” de um pacato cidadão?
17 Comments:
Que maravilha! Adorei. E já sabes, que venha a próxima! Beijinhos muitos, assassino de neuras e telhas :))
Na minha terra, temos um provérbio: "morte anuncaida, vida acrescentada". Com isso, deste mais uns anos de vida a esse senhor! LOL ;)
Obrigada pela passagem pelo Ilhas e Mar... Volte sempre que quiser!
Obrigada pela flor e pelo beijinho...
Para Caiê:
Não é só na tua terra; na minha também.
E, já agora, posso-te dizer que muito pouco tempo depois falecia a D. Laura, mulher da minha vítima, devido a doença prolongada, como se costuma dizer eufemisticamente.
E o Sr. Serafim, delegado de Propaganda Médica, viúvo inconsolável durante muitos anos, acabou por casar de novo e ainda viveu muito tempo. Penso que agora já terá falecido! O provérbio não prevê a imortalidade...eh eh eh
Mas não houve quem te aplicasse um valente de um castigo?Deliciosa a tua história.E obrigada, espero que também aches que fica melhor.Eu cá acho ouro sobre azul.
Pois é... O mesmo se passou com os meus avós. Ao meu, avô deram várias vezes os pêsames pela morte da mulher e ela viveu mais 20 anos do que ele!...
Só tu para nos trazeres uma historia destas...
É mesmo 'diz que disse'...
Ai, português, português!
a tua casinha blog?
ou a tua casinha, edifício?
Um rumor pode ser transformado numa catástrofe. Ou naquilo que quisermos. É verdade que este propagaste-o inadvertidamente.
Eis mais uma história com sentido e muito bem escrita como é apanágio do meu amigo António, que de louco nada tem.
Um abraço fraterno e amigo
Sendo assim, informo que não teve arquitecto, mas teve designer!
TAs com sorte, os servidores de blogs têm designers para idealizar as páginas...
Uma estória magnífica, mais uma vez.
Olha lá, eu quando aqui venho sou sempre Dora, nunca escrevi nada como "Anónima", ok? ;-)
confesso que no inicio penzei que irias ser acusado do assassinato de uma minhoca ou quiça de um bicho de conta, mas assim o caso muda de figura hehehehehh!!!! deve ter sido giro ...
É o que dão os rumores!! lol
De certeza que para a próxima os teus pais te pediram um atestado de óbito! ;)
Xinhos
Caí!
BShell
Qual morto qual quê... fugiu mas é! (isto foi o que a minha má língua pensou logo de início). É o que faz o diz que disse... Juntem isso à velocidade da luz e temos uma boato do tamanho do mundo.
;)
Mas que "boateiro"...afinal podias ter seguido Ciencias da Informação
que estavas mesmo no sítio certo.
Continua António!
Beijinhos
António
As tuas histórias são de facto incríveis, além de muito bem contadas, deixam-me sempre bem disposta, tem que sair sempre uma gargalhada. Mesmo sendo tu um "assassino"
Como tive um fim de semana longo, mas passado fora, ainda não terminei o meu conto, mas está quase, quase. :-)
Beijos
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