traz outro amigo também
Quando foi publicado o álbum “traz outro amigo também” do José Afonso, nos finais dos anos sessenta, princípios dos setenta, o meu grande amigo Nando, um dos tipos mais inteligentes e mais cultos que conheço (então estudante na FEUP e actualmente no nível abaixo de catedrático de Engenharia Civil e projectista de vias de comunicação rodoviárias), não resistiu a comprá-lo.
Não era propriamente um revolucionário, mas tudo o que considerava ter qualidade, agradava-lhe. Ainda hoje é assim.
Seu pai, arquitecto talentoso e amante dos livros e da música, tinha uma biblioteca e uma discoteca de discos clássicos que davam gosto. Muitas vezes ouvi obras de grandes compositores na sua casa. Desapareceu da nossa companhia precocemente, quando ainda caminhava para o sucesso e reconhecimento público que merecia.
Pois quando o Nando chegou, depois de ter adquirido o LP, encontrou na sala o pai com um amigo.
Muito satisfeito, exibiu o disco como um troféu e falou dele como de uma obra-prima.
O professor, pois o pai também tinha essa actividade, perante tantas loas, não se conteve:
- Mas quem é esse tipo? Dizes que também é poeta? Ora, poemas desses também eu faço. Ou ainda melhores – e lançou um olhar de gozo ao amigo, que concordou.
- Ó pai! Estás a falar e não ouviste o disco. Portanto, estás a falar do que não sabes.
- Já ouvi esse tipo a cantar na rádio. Não o queiras comparar aos que são verdadeiramente talentosos, como o Camões, por exemplo. Pode ter uma voz agradável e algumas músicas com boa sonoridade, mas…
- Olha, pai. Neste disco, está uma canção cuja letra é um poema de Camões e as outras são quasi todas feitas com poemas do José Afonso.
E lançou o desafio:
- Eu ponho o disco a tocar e tu, e o Sr. Eng. também, no fim dizem qual dos poemas é do Camões. Reconhecem que o Camões é um poeta fora de série, não é verdade?
E esperou, com o ar mais sério do mundo a resposta ao repto que habilmente lançara.
O arquitecto hesitou um pouco. Mas não tinha alternativa, e anuiu. O amigo também.
E o Nando coloca o disco no prato do aparelho e senta-se.
- Mas não digo os títulos – sentenciou o meu colega.
- Ah! As músicas também são quasi todas da sua autoria – esclareceu.
E vão passando sucessivamente:
“Traz outro amigo também”
- Hum…não me parece Camões. Podes eliminar.
“Maria Faia” (uma canção popular da Beira – Baixa)
- Esta não! Podes avançar!
“Canto Moço”
- Essa não elimines, para já!
“Epígrafe para a arte de furtar” (sobre um poema de Jorge de Sena)
- Hum…aguenta essa!
“Moda do Entrudo”
- Isso não! Passa à seguinte!
“Os eunucos”
- Essa também não! A seguinte!
“Avenida de Angola”
- Isso não é Camões!
“Canção do desterro”
- Aguenta essa! Muitas alusões ao mar!
“Verdes são os campos” (a que tinha como texto um poema de Camões)
- Essa tem laivos da lírica camoniana. É capaz de ser essa!
“Carta a Miguel Djéjé”
- Podes passar! Essa não é de certeza!
“Cantiga do monte”
- Não é má! Mas podes eliminar!
(todas aquelas em que não mencionei o autor tinham poemas do Zeca)
- Então pai? Ainda tens de optar por quatro.
- Põe essas outra vez – ordena o arquitecto.
E o Fernando lá fez tocar as que não tinham sido eliminadas.
Terminada a segunda sessão, o pai ainda hesitava entre a realmente camoniana e o “Canto Moço”.
- Bom! – disse – é a dos campos verdes.
- É, pai! Mas, afinal, não há assim uma diferença tão grande entre o José Afonso e o Camões! – disparou o jovem com um sorriso mordaz.
- Ora! E esse gajo era capaz de escrever os Lusíadas ou compor a Nona?
- Se calhar fazia melhor! – murmurou entre dentes o Nando.
E agora vão ouvir o disquinho, está bem?
É dos melhores do Zeca, na minha opinião.
Não era propriamente um revolucionário, mas tudo o que considerava ter qualidade, agradava-lhe. Ainda hoje é assim.
Seu pai, arquitecto talentoso e amante dos livros e da música, tinha uma biblioteca e uma discoteca de discos clássicos que davam gosto. Muitas vezes ouvi obras de grandes compositores na sua casa. Desapareceu da nossa companhia precocemente, quando ainda caminhava para o sucesso e reconhecimento público que merecia.
Pois quando o Nando chegou, depois de ter adquirido o LP, encontrou na sala o pai com um amigo.
Muito satisfeito, exibiu o disco como um troféu e falou dele como de uma obra-prima.
O professor, pois o pai também tinha essa actividade, perante tantas loas, não se conteve:
- Mas quem é esse tipo? Dizes que também é poeta? Ora, poemas desses também eu faço. Ou ainda melhores – e lançou um olhar de gozo ao amigo, que concordou.
- Ó pai! Estás a falar e não ouviste o disco. Portanto, estás a falar do que não sabes.
- Já ouvi esse tipo a cantar na rádio. Não o queiras comparar aos que são verdadeiramente talentosos, como o Camões, por exemplo. Pode ter uma voz agradável e algumas músicas com boa sonoridade, mas…
- Olha, pai. Neste disco, está uma canção cuja letra é um poema de Camões e as outras são quasi todas feitas com poemas do José Afonso.
E lançou o desafio:
- Eu ponho o disco a tocar e tu, e o Sr. Eng. também, no fim dizem qual dos poemas é do Camões. Reconhecem que o Camões é um poeta fora de série, não é verdade?
E esperou, com o ar mais sério do mundo a resposta ao repto que habilmente lançara.
O arquitecto hesitou um pouco. Mas não tinha alternativa, e anuiu. O amigo também.
E o Nando coloca o disco no prato do aparelho e senta-se.
- Mas não digo os títulos – sentenciou o meu colega.
- Ah! As músicas também são quasi todas da sua autoria – esclareceu.
E vão passando sucessivamente:
“Traz outro amigo também”
- Hum…não me parece Camões. Podes eliminar.
“Maria Faia” (uma canção popular da Beira – Baixa)
- Esta não! Podes avançar!
“Canto Moço”
- Essa não elimines, para já!
“Epígrafe para a arte de furtar” (sobre um poema de Jorge de Sena)
- Hum…aguenta essa!
“Moda do Entrudo”
- Isso não! Passa à seguinte!
“Os eunucos”
- Essa também não! A seguinte!
“Avenida de Angola”
- Isso não é Camões!
“Canção do desterro”
- Aguenta essa! Muitas alusões ao mar!
“Verdes são os campos” (a que tinha como texto um poema de Camões)
- Essa tem laivos da lírica camoniana. É capaz de ser essa!
“Carta a Miguel Djéjé”
- Podes passar! Essa não é de certeza!
“Cantiga do monte”
- Não é má! Mas podes eliminar!
(todas aquelas em que não mencionei o autor tinham poemas do Zeca)
- Então pai? Ainda tens de optar por quatro.
- Põe essas outra vez – ordena o arquitecto.
E o Fernando lá fez tocar as que não tinham sido eliminadas.
Terminada a segunda sessão, o pai ainda hesitava entre a realmente camoniana e o “Canto Moço”.
- Bom! – disse – é a dos campos verdes.
- É, pai! Mas, afinal, não há assim uma diferença tão grande entre o José Afonso e o Camões! – disparou o jovem com um sorriso mordaz.
- Ora! E esse gajo era capaz de escrever os Lusíadas ou compor a Nona?
- Se calhar fazia melhor! – murmurou entre dentes o Nando.
E agora vão ouvir o disquinho, está bem?
É dos melhores do Zeca, na minha opinião.
22 Comments:
Verdes são os campos , campos , verdes campos ... pronto desafinei estraguei tudo...
Efectivamente, meu caro!
Apesar de eu apreciar muito o Comboio Descendente.
Para "cokas":
Tenta entrar pelo Blogger.com e fazer "Republishing".
Jinhos
Sim, Cokas, Republish. Já me aconteceu o mesmo.
"Verdes são os campos da cor do limão
Verdes são os olhos do meu coração" dizia a minha avó também...
E não é que " o meu coração" tem olhos verdes?? AH AH AH
Esta do meu coração vem a calhar para ti, que me mandaste mostrá-lo... LOL
O pessoal da Maia é muito sensível...daí eu não estranhar o teu bom gosto ...:)
Ai quem me dera esse pai culto, com todos esses livros e discos na minha família.O meu é também, mas o gozo que me daría olhar para essas relíquias!
Os poemas do Zeca Afonso, conheço-os quasi todos, e, gosto!
Lol. Uma resposta para ti, lá. entretanto, não me tinhas dito que eras um poliglota! ;)
Tenho o álbum em vinil. Tenho tudo de Zeca.
Vou seguir o teu conselho - sábio - e vou ouvir essa grande instituição nacioanl que é José Afonso.
Abraço
Ora nunca tal me passou pela cabeça! Reconheço em Zeca Afonso um artista, um mestre da música... nunca pensei em compará-lo a Camões... ora aí está uma boa sugestão... vou pensar nisso seriamente; dá-me jeito nesta altura.
eu adoro zeca afonso...tenho LP's, faltam-me CD's :(
POr acaso sou fã do Zeca desde que me lembro (leia-se: desde sempre, pois a minha mãe já o era e sempre nos cantava "Eles comem tudo... e não deixam nada" qd eu e os manos armavamo-nos em "abutres" à mesa!!). Ele era de Aveiro (distrito) e não foi difícil saber mais dele enquanto vivi uns anos nessa cidade.
Muito boa escolha de tema!
beijinhos, obrigado pelas incansáveis visitas ao meu blog!
Quem não gosta de Zeca? Eu tenho todos os trabalhos do Zeca Afonso, uns meus outros da minha mãe, quase tudo em vinil, em CD tenho três apenas. Gosto de pôr um vinil de vez em quando a tocar, nunca os deixei de ouvir, não sei bem porquê, mas gosto! E PRONTO!!!
Ao escolheres Zeca, foi uma boa escolha. História contada daquela maneira que só tu sabes contar :-)
Beijocas
gosto do Zeca Afonso, pois claro. foi professor das minhas tias e ainda hoje elas são apaixonadas por ele. Sempre as ouvi falar deliciadas deste compositor tão modesto como são os verdadeiros artistas.
António
Sabes porquê!
É porque o Zeca é tão "GRANDE" que todos nós ficámos "presos" na grandeza daquilo que ele foi e continua a ser independentemente das gerações. Os meus pais gostam, eu gosto e o meu filho também gosta. O conflito de gerações ficou intencionalmente perdido. Porque quando se fala no Zeca Afonso, é abrangente a todas as gerações.
Mas de qualquer forma, peço-te desculpa, por não seguir (embora sem intenção) a pretensão da tua história.
Beijocas
E o Zeca, a cantar o "Verdes são os campos" arrepia-nos! Tanto sentimento numa voz tão límpida...
António,
quando falei em comparações não foi nesse sentido.
Mas não deixou de ser uma sugestão a ter em conta...
Acho que todas as musicas dele são divinas. beijos
Estou a ouvir, "Galinhas do Mato".
Um abraço, António
Agora vou cantar oH Faia Maria oh Maria Faia l´lá lá lá ...
«A formiga no carreiro vinha em sentido diferente, caiu à rua, caiu à rua, no meio de toda a gente...
A formiga no carreiro vinha em sentido contrário, caiu à rua, caiu à rua, aos pés de um septuagenário....»
Não me canso de ouvir o Zeca faz parte da minha mocidade e faz-me recordar e reviver os anos «quentes» do pós 25 Abril.
Obrigada António por me/nos fazeres recordar.
Anabela
Já li muita coisa sobre o Zeca mas assim não. É que dá mesmo vontade de ir ouvir e recordar! Obrigada por escreveres tão bem. Jinhos.
Tenho que confessar: Amo este Homem!
E, quantas vezes, quando tenho a oportunidade de estar sozinha em casa, ouço todas as suas músicas, sentada na sala, olando o mar...
E mato saudades...
Deixo-te aqui um dos poemas que mais gosto...
"Vejam bem
Que não há
Só gaivotas
Em terra
Quando um homem
Se põe
A pensar
Quem lá vem
Dorme à noite
Ao relento
Na areia
Dorme à noite
Ao relento
Do mar
E se houver
Uma praça
De gente
Madura
E uma estátua
De febre
A arder
Anda alguém
Pela noite
À procura
E não há
Quem lhe queira
Valer
Vejam bem
Daquele homem
A fraca
Figura
Desbravando
Os caminhos
Do pão
E se houver
Uma praça
De gente
Madura
Ninguém vai
Levantá-lo
Do chão
Vejam bem
Que não há
Só gaivotas
Em terra
Quando um homem
Se põe
A pensar
Quem lá vem
Dorme à noite
Ao relento de areia
Dorme à noite
ao relento do mar"
Um abraço e bom domingo :-)
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