Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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sábado, junho 25, 2005

Sequestro

Outono de 1982. Viviam-se dias agradáveis, soalheiros.
Eu trabalhava numa empresa sita em Sobrado, no concelho de Valongo, desde Abril de 1979.
Fora criada em 1949, curiosamente o ano do meu nascimento.
Em 1980 foi comprada por um dos maiores grupos empresariais privados portugueses mas, ao contrário das expectativas de todos os que nela trabalhavam, continuou financeiramente debilitada. Ou ainda pior. Os ordenados já eram pagos aos soluços.
Pressentia-se que o fim estava próximo.
Uma das panaceias que a administração usou para tentar evitar o que já era inexorável foi determinar que no chamado sector têxtil, onde quasi só trabalhavam mulheres, em dois turnos, se fizesse uma alteração.
Os dois grupos de funcionárias laboravam alternadamente, isto é, um deles funcionava das seis às catorze, o outro das catorze às vinte e duas. E assim durante uma semana. Passado o fim-de-semana, as operárias trocavam de turno. As que trabalhavam de manhã passavam para a tarde e vice-versa.
Este sistema não tinha nenhuma vantagem especial para a empresa mas, como propiciava, de acordo com o contrato colectivo de trabalho, um suplemento salarial de vinte por cento, agradava às mulheres.
Ora a decisão da administração foi no sentido de acabar com essa alternância e, consequentemente, cessava o tal acréscimo no rendimento.
É bom de ver que as movimentações começaram logo que a mudança foi anunciada para vigorar a partir de determinada segunda-feira.
Dirigentes e delegados sindicais andavam numa roda-viva a travar mais uma luta contra a exploração do patronato.
Um plenário foi convocado. Para as duas horas e assim, aproveitando a mudança de turno, estariam lá as mulheres todas, que eram umas centenas.
Antes de ir dar uma espreitadela ao local da reunião eu, que na altura também era chefe de uma parte das colaboradoras abrangidas pela nova regra, passei pelos salões onde as máquinas estavam quasi todas paradas por ausência das operadoras.
E reparei que uma tal Margarida, jovem, anafada, loira de cabelo curto, mal educada, regateira e delegada sindical, por toda a gente conhecida por Mamuda, estava junto de uma operária. Achei a situação estranha e aproximei-me.
Constatei que a operadora estava a chorar devido às ameaças que a Mamuda lhe fazia por ela não ir ao plenário e se manter com a máquina a trabalhar.
Irritado com a situação, e depois de ter feito algumas perguntas para me certificar que não estava a interpretar mal o que acontecia, disse para a loira:
- Se esta sua colega pretende continuar a trabalhar, a senhora não tem o direito de a estar a importunar. Portanto, saia já daqui!
A delegada sindical ainda ripostou (pareceu-me ouvir qualquer coisa como fascista) mas repeti a ordem em tom mais altissonante e ela lá foi devagarinho para outro lado. Claro que fui atrás dela para evitar que repetisse a cena com mais duas ou três colegas que tinham resolvido continuar a trabalhar.
Daqui a pouco já vão perceber esta referência especial à Mamuda.

E chegamos à tal segunda-feira em que a nova regra iria começar a funcionar.
Como se previam problemas, o director fabril, Eng. Veiga, eu, os meus colegas Jacinto (de que já falei algumas vezes nos meus textos, embora na qualidade de amigo) e Lopes, bem como o Miranda, chefe do Pessoal, decidimos aparecer nas instalações fabris antes das seis.
E as mulheres compareceram ao trabalho. Mas a maioria eram do turno que deveria vir só de tarde. As que acataram a nova regra eram poucas.
Perante a situação, o director decidiu deixar que as coisas continuassem assim e tentar falar com alguém da administração, mais tarde, para combinar a forma de combater a falta de cumprimento do estipulado. Refira-se que a sede administrativa ficava no Porto e não em Sobrado.
Por volta das dez da manhã, já o Eng. Veiga tinha tentado contactar algum administrador, mas sem sucesso.
E então, algumas operárias, lideradas pela Guida Mamuda, deixaram o local de trabalho, entraram na zona de serviços, subiram as escadas de acesso ao gabinete do director e foram falar com ele no sentido de ser revogada a directiva.
Claro que o Veiga não tinha poderes para tal e disse isso às empregadas. Estas, melhor, a Mamuda afirmou então que não iriam para o trabalho sem a anulação da ordem.
Saíram do gabinete e postaram-se na escadaria que ficava uns trinta metros adiante.
Quando, passados alguns minutos o director veio indagar qual a causa do barulho que continuava a ouvir, mas ainda mais ampliado, deparou já com umas dezenas de funcionárias às quais se dirigiu.
Foi recebido com apupos e palavras de ordem (como é habitual nestes casos) e com a intimação de voltar para o gabinete e só sair de lá quando o problema estivesse resolvido.
O director fabril telefonou então para o Porto a informar que estava sequestrado e tinha de falar com algum administrador. Mas de qualquer deles, nem rasto…
Depois ligou para o Miranda e para os três chefes de produção (eu, o Jacinto e o Lopes) a contar o que se passara.
E fomo-nos mantendo em contacto telefónico. Administradores, nada! E o grupo de mulheres liderado pela fogosa peituda continuava na escadaria.
Antes de ir almoçar, resolvi ir ver como estava o engenheiro director. Passei pelo grupo de mulheres, falei com o meu chefe, saí e, quando ia atravessar o grupo contestatário, a Mamuda avançou para mim, empurrou o seu bem almofadado peito contra o meu e gritou:
- Não passa! Não passa!
E logo as outras, num afinado coro:
- Não passa! Não passa!
E regressei ao gabinete donde tinha acabado de sair.
Estava sequestrado.
Não fiquei atrapalhado. Numa primeira fase até achei certa graça. Sempre gostei de situações incomuns.
Telefonamos aos colegas para não irem lá acima sob pena de também ficarem retidos.
E o dia foi passando. Cigarros, estratégias, conversa, tácticas, telefonemas. Nada de comida nem de administradores. Só autorização para ir fazer xixi.
Telefonei à minha mulher que estava grávida de oito meses. Contei-lhe o que se passava.
Ficou aflita, como seria normal, mas fui-lhe dizendo que não havia perigo nenhum e que mais isto e mais aquilo; não queria que se incomodasse excessivamente.
A certa altura da tarde, entra o Miranda. Não aguentava sem nos vir ver. E lá ficou.
Três!
Com o passar das horas, a fome e as palavras de ordem que eram gritadas de vez em quando, as preocupações foram aumentando.
E se aquela horda entrasse por ali dentro e nos agredisse? Cheguei a pensar que ainda seria defenestrado como o Miguel de Vasconcelos.
Nenhum administrador apareceu na sede nesse dia. Estávamos furiosos com eles. A decisão fora de sua responsabilidade e agora deixavam o seu representante na fábrica sem protecção nenhuma. Ainda chamamos a polícia (ou a GNR) mas, como de costume, não adiantou nada.
A tarde aproximava-se do fim.
Era preciso fazer qualquer coisa.
E o Veiga foi chamar uma delegação de duas ou três trabalhadoras para vir falar com ele. Vieram umas trinta para dentro do gabinete. Tive algum medo do que poderia acontecer.
Já não me lembro do que foi dito. Lembro-me que, por volta das dez da noite, se chegou a um acordo. Acho que isso aconteceu porque as mulheres acabaram por perceber que o Veiga não tinha poderes para tomar a decisão que pretendiam e porque elas próprias se queriam ir embora.
E assim acabou o sequestro.
Telefonei imediatamente para casa. Aliás, durante todo esse período, várias vezes o fiz para sossegar a mulher e outros familiares que, entretanto, já tinham sabido da minha desconfortável situação.
Para vos falar francamente, acho que fiquei preso só porque a Guida Mamuda se quis vingar da minha atitude no salão de máquinas e que intencionalmente narrei mais acima.
Nos dias seguintes, progressivamente, as trabalhadoras começaram a cumprir a determinação da administração que, na terça-feira de manhã, finalmente deu sinal de si.
Os salários continuaram a chegar cada vez mais atrasados. Penso que essa foi umas das razões para desmotivar a luta das empregadas. Começaram a perceber que aquela empresa que dava sustento a tanta família (em muitos casos a famílias inteiras; pai, mãe e filhos) estava moribunda.
Lembro-me que um dia uma jovem operária me disse:
- Sabe? Nós nascemos para ser pobres.
Menos de um mês depois nasceu o meu filho.
Cerca de mês e meio mais tarde mudei para outra empresa.
Ainda nela trabalho e, ironia das ironias, foi também comprada pelo mesmo grupo empresarial. Mas desta vez a coisa está a correr bem! Uff…No início de Janeiro de 1983 as máquinas da CIFA-Companhia Industrial de Fibras Artificiais, SA, pararam. Para sempre.

25 Comments:

Blogger Loucura said...

So pare dizer que nao desapareci..ausentei-me :D
E que a empresa onde trabalhas dure e dure e dure como as pilhas duracel:)
Beijinhos e bom fim de semana

2:28 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Gosto deste texto,duplamente!
A tua forma de escrever,inconfundível(adoro,já te disse!)e,como te "mexeste" neste mundo do trabalho...
Há seis meses que saí da minha empresa,despedi-me,por convicção,por coerência...dava uma história muito grande,os despedimentos sucedem-se este ano...tiveram a lata de me convidar(telefonicamente!) para ir para a Roménia!...enfim...um dia conto-ta.
Beijinho grande
Ana

10:40 da manhã  
Blogger António said...

Para a enigmática Ana:

Mais uma vez obrigado pelas tuas palavras.
Acho que já "vi" a tua história em traços muito largos.
Deixa-me perguntar-te:
Porque não a Roménia?
Costuma dizer o povo que "quem muda, Deus ajuda".
(embora comigo tenha acontecido por mais de uma vez o contrário...eh eh)
Jinhos

11:58 da manhã  
Blogger wind said...

Belo texto a contar uma realidade que aconteceu a muitas fábricas na altura e por vezes ainda acontece. Centenas pessoas mficam sem trabalho. Alguns são o casal. Mas políticas à parte, está muito bem escrito:)

12:15 da tarde  
Blogger Leonor said...

Uma história ´quotidiana que é um documento histórico pela época em que se insere e a mensagem que transporta.
abraço da leonor

12:56 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A Guida Mamuda??? LOL

Ai, as alcunhas... As alcunhas são um belo motivo para posts! ;)

ps- qual é a tua? eh eh eh

2:17 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bem, que aventura!
Obrigada pela partilha.
Espera-se que essa empresa navegue por boas ondas...e que as m... não te apareçam por lá!

5:03 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Testemunhos de uma vida plena. Excelentemente narrados, para não variar, caro amigo António.
Um grande abraço

7:34 da tarde  
Blogger António said...

Para "azul":
As Mamudas podem aparecer por cá.
Desde que não sejam delegadas sindicais...eh eh
Jinhos

7:49 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Passei para deixar um beijinho!

10:36 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Vou pegar num só ponto do teu texto, se não te importas (não porque não houvesse mais a dizer, mas porque isto pretende ser apenas um comentário, não nos devemos alongar demais, penso eu). Os delegados sindicais são, regra geral, gente dedicada às causas que defendem. Colocam-se na linha da frente e dão a cara, o peito, o que for, pelos outros. Parece-te, em boa verdade, que a delegada que mencionas poria em jogo a futuro de tantas trabalhadoras por despeito a uma só pessoa? regra geral, repito, as causas são bem mais nobres.

11:03 da tarde  
Blogger António said...

Para "Caterina":
Depois de a empresa ter falido, uma boa parte dos desempregados foi trabalhar a terra.
A delegada sindical arranjou emprego no Sindicato dos Têxteis onde mais tarde fez um desfalque.

11:29 da tarde  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

António

Uma história de vida contada na primeira pessoa, de uma forma perfeita, como já nos habituaste.

Um beijo grande

2:23 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

LOL =)

grande historia que contaste aqui..
por muitas empresas ainda se vão passando algumas idênticas.

Como sempre, excelente!!!

5:42 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Podes afirmar categóricamente "A minha vida dava um filme!". Afinal
a vida é cheia de situações interessantes e a nossa mente um grande armazém de histórias. Beijinhos

8:36 da tarde  
Blogger Nat said...

Olá, António. Se descobriste a Flossi pela minha mão, o mesmo é dizer, pelo meu link, fico muito feliz, que há muito que a acompanho e é uma mulher e pêras ;)

10:37 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

OIe... como sempre tá muito boa essa história....
Sem muita criatividade para escrever...
Bjussss
Fuiz

9:25 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

a mamuda tinha razão, mas... pelos visto, só tinha mamas e pouca seriedade.
Se me permite dizer! a guida neste contexto será um bocado de personagem do "Velho do Restelo", no sentido de representar um povo, uma epoca, uma politica,enfim.E Sr. Eng. devo dizer que a sua escrita é para todos.Ana Mª Costa

2:46 da tarde  
Blogger António said...

Madame Costa ou Mademoiselle Ana Maria:

Obrigado pela sua paciência para ler os meus textos e pelos seus comentários

Jinhos

2:52 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Sou Ana Maria só.
penso como uma criança, por vezes actuo tambem como tal, mas já tenho idade para ter juizo.
fique bem Sr. Eng.

3:06 da tarde  
Blogger heidy said...

Eu era muito pequena nessa altura, mas lembro-me de uma fábrica da minha zona, que se chamava "Messa". Dava trabalho a muitas familias e em 1982, fechou. Lembro-me que de colegas que ficaram em situações tão complicadas que a escola onde eu andava, teve de arranjar maneira de os alimentar pelo menos uma vez por dia. Foi muito duro. E tudo por causa da irresponsabilidade de quem a dirigia. Ainda hoje o processo está em tribunal. E já passaram 23 anos. :( Mas sei que este episódio deixou marcas por estas bandas.

10:29 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

mais uma das muitas historias, que aquela grande CIFA produziu. agora trabalho lá, mas sempre com grande atençao a historia. ja sao mais de meio seculo, muitas felizes, tristes e caricatas como aqui é narrada na 1ª pessoa de uma forma ironica. mas quem sofreu foi a minha freguesia, infelizmente por um lado, mas felizmente para as geraçoes futuras, na qual eu pertenço. mas adoro estas historias, obrigado por este registo, na esperança de que a sua memoria comporte outras.

2:45 da manhã  
Blogger António said...

Para "Manuel Dias":
Obrigado pela sua visita e comentário.
Penso que, actualmente, nas instalações da Cifa existe uma espécie de Parque Industrial onde estão sediadas algumas empresas.
Que tenha mais sorte que os de 1982/83.
Abraço

1:39 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

olá... sou a marisa tenho 22 anos e sou de sobrado. adorei ter conhecimento deste caso acerca da CIFA, e sinceramente gostaria falasse algo mais acerca da CIFA, isto porque os meus avós paternos eram colaboradores da cifa e contaram-me alguns episódios... prazer e fico a aguardar ;-)

12:35 da manhã  
Blogger António said...

Para "Marisa"!
Neste momento estou de férias de escrita.
Mas se quiseres falar comigo sobre a CIFA, podes contactar-me para:
a.castilho.dias@clix.pt.
Ok?
Jokas

8:21 da manhã  

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