Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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terça-feira, junho 14, 2005

Vocação religiosa

Isto das histórias do passado é como as cerejas.
Tira-se uma e vem logo atrás duas ou três. Ou mais.
Por isso vou-vos fazer mais uma narrativa dos meus tempos de escola primária.


Tudo começou no ano lectivo de 1957/58. O ano em que fui gloriosamente eleito chefe de turma.
Numa manhã duma quinta-feira normalíssima, a já conhecida D. Ester, dedicada e competente professora, estava dando a sua aula quando se ouviu um truz-truz na porta.
A mestra foi abri-la e surgiu um padre. Vestido a preceito, pois naquele tempo não havia padres à paisana. E com coroa, pois claro.
Era muito jovem e com boa figura.
Como mandavam as regras, a malta levantou-se toda. Era a forma oficial de saudação e de mostrar boa educação.
Logo a seguir diz a senhora:
- Podem sentar-se. O senhor padre autoriza.
Cumprida a ordem, continuou:
- Este é o Sr. padre Rocha que virá aqui à aula, todas as quintas feiras, para vos dar uma lição de Religião e Moral. Durará cerca de uma hora. E portem-se bem!
Ouviu-se um burburinho que foi imediatamente interrompido por um mero olhar mais carrancudo da professora.
E o padre começou quasi de imediato a falar.
Não sei o que disse.
Sei que logo nesse dia começou a cativar-nos com a sua forma serena de estar e o modo como se nos dirigia e fazia participar nas questões tratadas.
E, a partir daí, a horinha com o padre Rocha era um momento sempre desejado.
Chegados ao fim do ano escolar, todos pedimos ao sacerdote para voltar no ano seguinte.
Disse que gostaria muito, mas não sabia se era possível.
Acabadas as férias grandes, voltamos à escola. Agora na 4ª classe.
Numa das primeiras quintas-feiras, apareceu a D. Ester com um ar contristado a dizer:
- Hoje vão começar novamente as aulas de Religião e Moral.
- Vem o padre Rocha? – gritamos.
- Não!
- Oh!!! – saiu-nos pesaroso e redondinho este “Oh!!!”
- Não pôde ser. Mas o senhor padre que vem este ano também é muito bom.
Qual quê! Queríamos era o padre Rocha.
Eis que um dos alunos grita:
- O padre Rocha está ali escondido atrás da porta. Eu vi-o!
Desmascarado, o sacerdote entrou, perante os gritos e palmas de euforia da rapaziada e os sorrisos complacentes dos dois adultos.
E, durante todo o ano, essas horinhas foram um regalo.
O padre Rocha tinha um verdadeiro talento para lidar com crianças.
Terminado o ano, feitos os exames da 4ª e de admissão, começaram as merecidas férias antes de uma nova etapa das nossas vidas ter início.
Uma ou duas semanas depois de iniciadas as férias, houve um telefonema do padre Rocha para casa dos meus pais.
Foi a minha mãe quem atendeu. Era o jovem clérigo que pretendia convidar-me para um lanche nas esplanadas do Palácio de Cristal. A mim e ao Quim Delgado (este Quim não tem nada a ver com o outro de que falei na história do “esquentamento de consciência”, convém dizê-lo por causa das dúvidas). Após alguns telefonemas, tudo ficou aprazado para uma das tardes seguintes. O Delgado viria ter a minha casa e depois, os três, iríamos merendar.
Entretanto, a minha irmã, com os seus oito aninhos, mas sempre muito ladina e desconcertante, ia observando tudo.
- Ó Tone! Ainda vais para padre! – e ria-se com ar trocista.
Há hora do jantar, e depois de posto ao corrente da situação, o meu pai não se mostrou muito agradado:
- Já percebi que ele anda a pescar rapazes para o seminário. Mas tu não estás interessado em ir para padre, pois não, meu filho?
- Não, papá!
E, de facto, nunca sentira a menor vocação para o sacerdócio. Dizia sempre que queria casar e ter filhos.
E chegou o dia combinado.
O Quim Delgado já tinha vindo e estávamos ambos a brincar na rua.
E chegou o padre. Beijinhos, entramos em casa, a minha mãe fez o papel de anfitriã e a minha irmã lá estava muito caladinha.
A certa altura, o padre fez uma primeira abordagem à nossa ida para o seminário.
E a minha maninha não se conteve. Usando uma expressão que ouvira várias vezes, não só lá em casa mas também na de outros familiares e amigos, disparou:
- Ele não quer ir para padre porque os padres são capados!
Meu Deus!
Padre com sorriso amarelíssimo. Mãe aflitíssima. Eu embasbacado. Quim…nem reparei. E a Nandinha com um sorriso de orelha a orelha!
A minha pobre mãe desfez-se em desculpas. O padre dizia que era normal nas crianças.
E lá fomos para o Palácio que era a melhor maneira de fugir ao embaraço.
De resto, tudo correu bem.
Estava uma bela tarde de Julho e o nosso amigo sacerdote ainda voltou a falar no assunto, agora de forma mais directa, mas ambos fomos peremptórios a dizer que não era essa a nossa vocação.
Regressamos a casa, fizeram-se as despedidas e o clérigo abalou.
Durante alguns anos não ouvimos falar no padre Rocha.

Cinco ou seis anos depois, estava eu a ler a necrologia (no que imitava o meu pai) d´O Comércio do Porto, que era o jornal diário lido em casa, quando se me depara a notícia, brutal!
Tinha morrido, vítima de doença prolongada, o Rev. António da Rocha Soares.
Devia andar pelos trinta anos. Nem tivera tempo de envelhecer. Que injustiça!
(acho que ainda verti uma lagrimazita)

17 Comments:

Blogger Caiê said...

Consegui ser a primeira a postar um comment neste concorrido blog!!!

12:44 da manhã  
Blogger Caiê said...

pronto!
já liberta de excitação(eheheh) gostava de dizer que acho muita graça a essa frase infantil "os padres são capados". Não são, mas obrigam-nos a viver como se fossem! é injusto, e uma crueldade por parte da instituição eclesiástica quanto a mim...
tu próprio apontaste como razão maior para não seres padre o "casar e ter filhos"... e se podesses ter tudo isso?
o sacerdócio católico, do modo como está, é um castrador.
õs pastores protestantes e os rabis (judeus) podem casar. os padres vivem como eunucos...

12:48 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Ai, a espontaneidade das crianças! A tua irmão Nandinha devia ser uma menina engraçadíssima. Fiquei com pena do Padre, realmente não envelheceu...

1:23 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

E eu verti duas, uma pelo Padre Rocha( que não conheci), mas que me agradou, e, outra pela tua perda.Simples e airosa, a forma como tratas as palavras por "tu"!

10:04 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Quem diria, que tu tão descrente e agnóstico tivesses tido uma relação de tão grande proximidade com o padre Rocha...
Eles até vão sabendo algumas coisas, hã?
E sabem proporcionar bons encontros!?!?!
Bem, ;)

Bjo

11:21 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Lido assim de longe, a palavra relação soa-me mal...
Mas compreendes o intuito, certo?

LOL

11:22 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

OIe!!!
Tudo bom!?!?
Massa o texto...
Bjussss
Fuiz!

8:16 da tarde  
Blogger António said...

Para "azul":
Quando é que crias o teu blog?
Jinhos

9:36 da tarde  
Blogger António said...

Para "guevara":
Pois fizeste muito bem em alertar para o sentido da palavra relação.
Senão ainda alguém iria pensar que o padre Rocha era pedófilo.
E não seria o primeiro...eh eh
Jinhos

9:39 da tarde  
Blogger António said...

Para "cokas":
E eu que pensava que tinha uma lista grande antes de saber da tua.
Jinhos

9:42 da tarde  
Blogger Mitsou said...

Isto de fazer a ronda a estas horas também tem algumas vantagens. Bom, adorei a tua história, claro. É sempre um enorme prazer ler-te e tu sabes. Mas fiquei também a saber que a nossa outra contista "posta" a seguir à meia-noite, como eu. Ah, maltinha sem sono! Beijinhos, António :)

11:59 da tarde  
Blogger Nora Borges said...

Também estudei em colégio católico de freiras francesas... era comum que elas fizessem essas "convocaçoes"...

3:53 da tarde  
Blogger Loucura said...

As crianças tem aquela inocencia que as torna tao adoraveis...Naquele momento ate nos podem, de algurma maneira, envergonhar, mas nao deixam de ter a sua pitada de piada.
Se eu contasse todas as historias passadas com os meus sobrinhos....tinha pano para mangas!
Beijinhos

4:43 da tarde  
Blogger Leonor said...

A morte não se conhece, não se compreende, não se aceita. Ela vem quando vem...
Quanto à pesca de meninos para o seminário, safaste-te...

abraço da leonor

9:39 da tarde  
Blogger saltapocinhas said...

Gostei da história do padre (não gostei que tenha morrido tão novo), mas o que fizeste foi lembrar-me ds CEREJAS... Vou já à cozinha!

12:55 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Outra excelente história das tuas memórias. Continuo a achar que devias escrever um livro. E agora tb acho - já que os padres não são capados - que poderias ter optado por sê-lo. Podias ter filhos na mesma! E mulher. Só que se chamaria prima, madrinha, ou qq outra coisa parecida.
Olha as vantagens!
Abraços

12:14 da tarde  
Blogger Mitsou said...

Bom fim-de-semana, ó desaparecido :)
Beijinhos!

9:56 da tarde  

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