Sobrevoando a savana
Em Outubro de 1974 estava em Luanda, alojado na messe dos oficiais da Armada, junto à Base Naval, na Ilha do Cabo.
Tinha regressado de três meses em S. Tomé e Príncipe onde estivera em missão de patrulhamento a bordo do “Rovuma”.
Já vos descrevi alguns aspectos do navio e sua guarnição no meu post “O meu 25 de Abril” publicado nesse mesmo dia deste ano da graça (ou da desgraça) de 2005.
Entretanto, o navio fica em estaleiro para reparações.
Uma bela manhã, recebi uma comunicação do Comando Naval para lá me apresentar.
Ficava na marginal e cheguei rapidamente.
Deram-me instruções para seguir para o Rivungo, durante um mês, substituir o comandante do Destacamento de Marinha do Cuando e assim permitir que ele viesse de férias.
Não gostei da ideia, mas nada mais me restava senão cumpri-la.
O Destacamento ficava no extremo sudeste de Angola, juntinho à Zâmbia, e tinha fama de ser o verdadeiro Cu de Judas, bem mais cu e bem mais Judas que o açoriano, de S. Miguel.
Quem de lá regressava, após dois anos de comissão de serviço, vinha seguramente apanhado da mona. Felizmente eu só ficaria um mês. Aí, a ideia de conhecer o desconhecido, de fazer uma viagem às terras do fim do mundo, começou a aparecer-me com alguns atractivos.
E lá fui!
Alguns dias depois, voei até ao Kuíto (ex-Silva Porto). Não vi nada dessa cidade porque pouco depois apanhei mais um voo comercial até Menongue (ex-Serpa Pinto).
Aí pernoitei no hotel Luiana e ainda tive tempo de apreciar uma pequena mas bonita cidade, com uma calmaria que, se a alguém fosse dito que estava num país em guerra, certamente não acreditaria.
Era, e é, a capital do distrito do Cuando-Cubango ou, na ortografia actual, Kuando-Kubango. Teria de voar para o outro extremo desse distrito.
Para isso, dirigi-me novamente ao aeroporto onde tinha sido reservado um lugar na avioneta que fazia semanalmente a circuito nessa área para transporte de pessoas, pequenas mercadorias, correio, jornais, alimentos, e pouco mais.
Carregando a bagagem, que não era tão pouca como isso, pois sempre tive relutância em separar-me das minhas coisas (ainda hoje sou assim), lá fui ter com o piloto da aeronave. E não esqueci a máquina fotográfica.
Cumpridas as formalidades, entrei para bordo.
Era um minúsculo avião de quatro lugares. Só havia duas pessoas a bordo. O piloto e eu, ocupando os dianteiros. As bagagens ocuparam os de trás.
E começou o ronronar dos motores…
Motores?
Porra! Aquilo só tinha um motor!
Comecei a ficar preocupado. Se o motor avariasse, restava nada, quer dizer, queda a pique.
Bom! Mas manda quem pode e obedece quem deve! Eu bem gostaria de ir numa coisa com pelo menos quatro motores, mas…
Confessei ao senhor algum receio, só algum, para não fazer muito má figura. Disse-me para não me preocupar pois nada iria acontecer. Ainda para mais o tempo estava óptimo.
Fiz que acreditei.
A rota era para sul, numa primeira fase. E pouco depois vi-me a sobrevoar a verdadeira savana africana, território de elefantes, leões, girafas, zebras, gazelas, javalis, eu sei lá…ah…e os crocodilos e hipopótamos nos rios.
Chegados junto da fronteira com a Namíbia (na altura ainda colonizado e chamado de Sudoeste Africano), alteramos o rumo para leste, seguindo o rio Kubango, que corre exactamente nesse sentido e faz o limite fronteiriço.
A certa altura a avioneta começa a descer e aterra aos solavancos na pista de terra batida de Cuangar, pequena povoação onde viviam quasi exclusivamente indígenas.
O piloto deixa umas coisas e carrega outras. Eu apreciava tudo aquilo, completamente novo para mim.
E aqui vai disto! Mais solavancos e avião no ar.
O certo é que o aviãozito parecia funcionar bem. E o piloto sabia do ofício, sem dúvida.
A escala era agora em Calai, e depois de ter estado junto ao solo, pude verificar que toda aquela região era muito plana e geologicamente velha, de solo mole, arenoso mesmo, com uma escassa vegetação rasteira, meio seca, e com árvores de pequeno ou médio porte disseminadas em pequenos grupos. Um tanto como os chaparros no Alentejo, mas com uma velhice e uma secura bem maiores.
Do ar, viam-se alguns troncos, ainda em pé, a arder. Era o resultado da queda de raios pois nesse território eram frequentes as trovoadas.
De repente, vejo uma enorme manada de elefantes. Parecia um formigueiro. Clique…já está! É uma das fotos que ainda guardo.
E começou a descida para Calai.
Repetiu-se a cena.
E mais adiante Dirico.
O aviãozinho rumou então para nordeste em direcção ao meu destino: Rivungo.
Já se avistava o rio Kuando, que corria para sul.
Cheguei são e salvo.
E aí vivi dois (acabei for ficar o dobro do tempo) meses completamente diferentes de tudo o que havia experimentado ou alguma vez viria a vivenciar.
Um dia vos falarei das minhas aventuras como comandante do Destacamento de Marinha do Cuando. Bom…o destacamento eram trezes homens, incluindo eu. E mais uma lancha de desembarque pequena. Mas que grande tropa eu ia comandar!
Tinha regressado de três meses em S. Tomé e Príncipe onde estivera em missão de patrulhamento a bordo do “Rovuma”.
Já vos descrevi alguns aspectos do navio e sua guarnição no meu post “O meu 25 de Abril” publicado nesse mesmo dia deste ano da graça (ou da desgraça) de 2005.
Entretanto, o navio fica em estaleiro para reparações.
Uma bela manhã, recebi uma comunicação do Comando Naval para lá me apresentar.
Ficava na marginal e cheguei rapidamente.
Deram-me instruções para seguir para o Rivungo, durante um mês, substituir o comandante do Destacamento de Marinha do Cuando e assim permitir que ele viesse de férias.
Não gostei da ideia, mas nada mais me restava senão cumpri-la.
O Destacamento ficava no extremo sudeste de Angola, juntinho à Zâmbia, e tinha fama de ser o verdadeiro Cu de Judas, bem mais cu e bem mais Judas que o açoriano, de S. Miguel.
Quem de lá regressava, após dois anos de comissão de serviço, vinha seguramente apanhado da mona. Felizmente eu só ficaria um mês. Aí, a ideia de conhecer o desconhecido, de fazer uma viagem às terras do fim do mundo, começou a aparecer-me com alguns atractivos.
E lá fui!
Alguns dias depois, voei até ao Kuíto (ex-Silva Porto). Não vi nada dessa cidade porque pouco depois apanhei mais um voo comercial até Menongue (ex-Serpa Pinto).
Aí pernoitei no hotel Luiana e ainda tive tempo de apreciar uma pequena mas bonita cidade, com uma calmaria que, se a alguém fosse dito que estava num país em guerra, certamente não acreditaria.
Era, e é, a capital do distrito do Cuando-Cubango ou, na ortografia actual, Kuando-Kubango. Teria de voar para o outro extremo desse distrito.
Para isso, dirigi-me novamente ao aeroporto onde tinha sido reservado um lugar na avioneta que fazia semanalmente a circuito nessa área para transporte de pessoas, pequenas mercadorias, correio, jornais, alimentos, e pouco mais.
Carregando a bagagem, que não era tão pouca como isso, pois sempre tive relutância em separar-me das minhas coisas (ainda hoje sou assim), lá fui ter com o piloto da aeronave. E não esqueci a máquina fotográfica.
Cumpridas as formalidades, entrei para bordo.
Era um minúsculo avião de quatro lugares. Só havia duas pessoas a bordo. O piloto e eu, ocupando os dianteiros. As bagagens ocuparam os de trás.
E começou o ronronar dos motores…
Motores?
Porra! Aquilo só tinha um motor!
Comecei a ficar preocupado. Se o motor avariasse, restava nada, quer dizer, queda a pique.
Bom! Mas manda quem pode e obedece quem deve! Eu bem gostaria de ir numa coisa com pelo menos quatro motores, mas…
Confessei ao senhor algum receio, só algum, para não fazer muito má figura. Disse-me para não me preocupar pois nada iria acontecer. Ainda para mais o tempo estava óptimo.
Fiz que acreditei.
A rota era para sul, numa primeira fase. E pouco depois vi-me a sobrevoar a verdadeira savana africana, território de elefantes, leões, girafas, zebras, gazelas, javalis, eu sei lá…ah…e os crocodilos e hipopótamos nos rios.
Chegados junto da fronteira com a Namíbia (na altura ainda colonizado e chamado de Sudoeste Africano), alteramos o rumo para leste, seguindo o rio Kubango, que corre exactamente nesse sentido e faz o limite fronteiriço.
A certa altura a avioneta começa a descer e aterra aos solavancos na pista de terra batida de Cuangar, pequena povoação onde viviam quasi exclusivamente indígenas.
O piloto deixa umas coisas e carrega outras. Eu apreciava tudo aquilo, completamente novo para mim.
E aqui vai disto! Mais solavancos e avião no ar.
O certo é que o aviãozito parecia funcionar bem. E o piloto sabia do ofício, sem dúvida.
A escala era agora em Calai, e depois de ter estado junto ao solo, pude verificar que toda aquela região era muito plana e geologicamente velha, de solo mole, arenoso mesmo, com uma escassa vegetação rasteira, meio seca, e com árvores de pequeno ou médio porte disseminadas em pequenos grupos. Um tanto como os chaparros no Alentejo, mas com uma velhice e uma secura bem maiores.
Do ar, viam-se alguns troncos, ainda em pé, a arder. Era o resultado da queda de raios pois nesse território eram frequentes as trovoadas.
De repente, vejo uma enorme manada de elefantes. Parecia um formigueiro. Clique…já está! É uma das fotos que ainda guardo.
E começou a descida para Calai.
Repetiu-se a cena.
E mais adiante Dirico.
O aviãozinho rumou então para nordeste em direcção ao meu destino: Rivungo.
Já se avistava o rio Kuando, que corria para sul.
Cheguei são e salvo.
E aí vivi dois (acabei for ficar o dobro do tempo) meses completamente diferentes de tudo o que havia experimentado ou alguma vez viria a vivenciar.
Um dia vos falarei das minhas aventuras como comandante do Destacamento de Marinha do Cuando. Bom…o destacamento eram trezes homens, incluindo eu. E mais uma lancha de desembarque pequena. Mas que grande tropa eu ia comandar!
15 Comments:
Ele é mortes, quase mortes, viagens a prometer a morte.
Palpita-me que andas sempre bem agarradinho à vida.
Já te disse que as tuas histórias são fantásticas? Não? Atão cá vai: são fantásticas...
Se as tuas histórias, em vez de estarem num blog, estivessesm em forma de Jornalinho, esgotavam!
Bjo, ;)
Concordo com o que já aqui foi dito. Tens histórias fabulosas.
Um toque de humor no final. Um destacamento de três homens! - Bolas António, nem uma mulher?
Palpita-me que falta contar essa parte..eheheh
Abraços
13...eu confundi com 3.
Mas mesmo 13...aposto que havia umas morenaças giras por lá!
Conta, conta...
António
Também já andei numa desses "coisas" avião é que não lhe chamo! tudo menos isso.
13 homens já é um grande Destacamento!
Enfim... as tuas deliciosas histórias, que tanto gosto de ler.
beijinhos
Mas tu és um óptimo contador de histórias, António, explora bem esse teu talento...
Beijinhos
...e eu senti-me dentro desse aviãozito (porra) só com um motor, a fingir acreditar (como tu) que tudo iria correr bem; vi o solo arenoso, vi os troncos a arder, vi o riozinto, vi a manada de elefantas...e vi-tr todo inclinado a tirar-lhe a fotografia (para que coste e para mostrar um dia aos netos)...vi e senti...porque tu tens um dom escepcional para contar estas tuas histórias....
Muito obrigada pela visita. Beijo ternurento,
BShell
"Excepcional"...claro...e não aquele erro ortográfico estúpido que dei ali em cima...heheheh
Foi da queda!
AH...já me sento sem ter de gemer. é que o traseiro foi uma das zonas que mais danos sofreu...'tadito..
BShell
Oh!...andei dezenas de vezes nestas caixas de fósforos,adoro aviões,estes foram os primeiros em que andei...um tio oficial da FA e que me fazia as vontades...depois...algumas horas de vôo e,outros aviões,melhores,né?!...depois queria eu pilotar e...chega!
Adorei a tua estória e,a tua guerra...obrigada,hoje os teus olhos fizeram-me rever as terras onde fui feliz,nem mais,gostei muito.
beijinho grande.
M
Maravilha! Sabes, estou a ler-te mas é como se estivéssemos sentados numa varanda daquelas das casas do mato, com um calor desgraçado, mosquitada e tudo, a ouvir-te as aventuras :) Adorei, claro. Beijocas!
Obrigado pelas palavras, ó M!
Quem és tu?
Fechei os olhos e quase consegui visualizar alguns "flashes" que narraste. Segui um pouco a linha do "África minha", claro. Desnecessário será dizer que adorei. Um beijo e bom fim de semana :-)
Não percebi a conversa do açoriano, amigo... ;) Explica-me!
Não conheço esse lugar, António. O mais parecido só se for Rabo de Peixe. eh eh eh! Pelo nome, não por ser longe...
Fala-me das histórias da Marinha, please... É um prazer para mim: o meu avô era da Marinha. ;) Fui criada pelos meus avós.
Por favor será que alguém me pode arranjar uma fotografia de um antigo frigorífico a petróleo?
Agraceço,pois já percorri a internet toda !!!!!!! e não encontrei e gostava de poder mostrar a umas pessoas para que acreditem que já existiram.Obrigado
José Pinto
carianopinto@netcabo.pt
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