Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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sábado, julho 09, 2005

Lutador anti-fascista

Ano de 1969.
A crise académica desencadeou-se em Coimbra aquando da visita do então Presidente da República Américo Thomaz.
Na sessão de inauguração de um novo edifício, salvo erro ligado às Matemáticas (mas haverá muita gente que conhece muito melhor esta peripécia do que eu e pode corrigir-me), o presidente da Associação Académica e actual deputado Alberto Martins pretendeu usar da palavra como representante dos estudantes. Tal foi-lhe negado.
Quando os participantes na cerimónia saíram para o exterior, um muito numeroso grupo de estudantes insultou o Thomaz (chamando-lhe, em bem sonoro e afinado coro, de palhaço) e outras altas individualidades como o então ministro da Educação, o bem conhecido Hermano José Saraiva.
Daí para a frente, foi um processo tumultuoso que teve o seu zénite na greve aos exames da Academia coimbrã.
Mas o movimento alastrou a Lisboa e ao Porto que eram, ao tempo, as únicas cidades com ensino superior (se já havia em Évora, peço desculpa, mas teria ainda muito pouca gente).

No Porto, eu frequentava o 3º ano, que era também o último dos chamados preparatórios e que eram leccionados na Faculdade de Ciências. Só depois faria os dois últimos anos, na Faculdade de Engenharia, à rua dos Bragas.
E, embora longe do vigor contestatário da cidade do Mondego, foram-se fazendo uns comícios (só depois da revolução é que percebi que o Partido Comunista, e não só, já estavam por trás das movimentações).
Estes realizavam-se sobretudo no átrio interior da entrada da Faculdade de Ciências.
A frontaria do vetusto e bonito edifício estava (e ainda está) voltada para o largo dos Leões (oficialmente é a praça de Gomes Teixeira), com o seu grupo escultórico no meio do lago e os tapetes de relva bem verdinha.
Entrando pela larga porta de ferro e vidro, podíamos ver o átrio e, ao fundo, duas escadarias largas, em pedra, que conduziam ao andar superior. Entre ambas existia um espaço ocupado por uma secretária.
Pouco visíveis da entrada e muito perto das escadas, nasciam lateralmente dois corredores mal iluminados que davam para a zona da Química, um deles, e para a da Mineralogia e Geologia, o outro.
Pois era nessas escadarias que, quasi todos os dias, havia uns quantos colegas mais activos politicamente que faziam as suas intervenções oratórias de mal dizer do regime, do governo, da guerra colonial, da falta de liberdade e democracia e de tantas coisas a que o salazarismo-marcelismo fornecia múltiplos argumentos.
E o maralhal quando lá passava ficava a ouvir durante algum tempo, aplaudindo as passagens mais empolgantes. E depois ia à vidinha.
Mas não eram só os anti-fascistas quem tinha voz.
O Zé Gordo, um tipo anafado de óculos verdes, graduado da Mocidade Portuguesa e defensor assumido e convicto do regime, também falava para uma plateia onde tinha alguns (poucos) apaniguados e muitos mais mirones. Quando era aplaudido pelos colegas situacionistas, logo os apupos se ouviam bem mais alto e, alguns democratas ainda pouco esclarecidos, mandavam-no calar ou ir para a rua.
Confesso que admirava a coragem do sujeito.

E chegamos ao dia D.
Melhor, dia P, pois estava convocado um plenário para discutir qualquer coisa que já não sei o que era.
O átrio estava prenhe de malta. Rapazes e raparigas. Nas escadas de pedra os activistas da luta anti-fascista, agora já reconhecidos por todos.
Eu estava mais ou menos a meio com o meu colega e amigo Fernando.
A sessão começou às três da tarde.
Discursos, aplausos, apupos quando se falava no Marcelo, no Thomaz ou no regime e, a certa altura, ouviu-se uma voz a dizer.
- A polícia de choque chegou!
- Ninguém arreda pé! – disse um dos líderes.

E o plenário continuou como se o alerta não tivesse sido ouvido.
Sinceramente, não me pareceu que houvesse alguma intervenção policial, pois tudo decorria com bastante calma.
Pelo sim pelo não, fui magicando na táctica a seguir.
Sair dali era uma vergonha. E eu também era do reviralho, que diabo. E não era nenhum cobardola. Havia que enfrentar a situação de frente mas com inteligência.
E que decidi fazer?
Partindo do princípio que os agentes não eram muito dotados intelectualmente e que, pensava eu, batiam no que mexia, o melhor seria estar quieto. Melhor ainda: poderia dar-me uns ares de informador da PIDE, fazendo uma cara de quem está a apreciar o comportamento de uns e outros, E olhar sempre os monos nos olhos.
Passados uns bons dez minutos, e vindos dos dois corredores que atrás referi, irrompem a correr pelo átrio dentro uma boa quantidade de agentes, com cassetetes no ar e capacetes na cabeça. Ainda não se usavam os escudos de plástico transparente.
O pânico é geral. As meninas, como é habitual nestas coisas, começaram com os gritos mais ou menos histéricos.

Como não entrara polícia pela porta principal, foi por ela que os estudantes começaram a sair.
Mas eu mantive a minha táctica. Curiosamente, o Fernando procedeu exactamente da mesma maneira sem combinarmos nada. Só quando a zona estava quasi vazia é que ele me fez um sinal para sairmos,
Ninguém nos tocou!
Nos relvados do largo estavam imensos contestatários, sentados ou em pé, a insultar os polícias. Dirigimo-nos calma e firmemente para a porta onde já estavam a juntar-se os invasores.
Mal pus um pé na rua. Pumba! Apanhei com um pedaço de relva, com as raízes cheias de terra, em cheio na cara. Era dirigido aos monos mas eu é que apanhei com o torrão nas trombas.
Porra! Então a polícia não me agrediu e os anti-fascistas foram quem o fez?
Fiquei pior que estragado!
Mas compreendi e perdoei de imediato! Solidariedade académica e anti-fascista acima de tudo.
Entretanto, eu e o Fernando dirigimo-nos para o passeio onde ficam as igrejas do Carmo e das Carmelitas, com o intuito de chegarmos ao bar de Letras onde a malta mais amiga se juntava diariamente.
Eis que olho para trás e vejo um mono a correr atrás de nós com gestos ameaçadores.
Toca a aplicar a mesma dose. Paramos, olhamos o homem bem de frente com cara de poucos amigos, e não é que ele dá meia volta e manda uma cassetetada numa velhinha que ia a correr?
A tese foi completamente confirmada pela experiência.
Chegados ao bar, contamos as ocorrências com um acento triunfal.
E havia razões para isso.


E assim começou e acabou a minha actividade como anti-fascista!
Ou será que qualquer dia me lembro de outra acção heróica que, quem sabe, me torne credor de uma daquelas medalhas que o Presidente da República distribui no 10 de Junho?

22 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ouve,tu és mesmo um cromo...daqueles difíceis!!!és assim,né?os outros regam para ter rama para os nabos que são ...dizem adeus para as câmaras e pagam para a fotografia...tu fizeste aqui umas pequenas cirurgias na história...ó pá olho clínico,que eu cá não sou engenheira...ah!julgavas que era o sexto sentido?nã!
Pois.eu adorava ter lá estado,sabes que este pessoal era...eram os meus herois,vê só,o meu avô escrevia-me cartas tipo redação ou histórias, como queiras,porque algumas das cartas eram abertas(ele tinha ficha e o correio era "consultado" por esses...)mas ele escrevia...explicava-me para eu entender de uma forma espantosa...
Bem,se calhar já muita gente se esqueceu desta crise...académica,e...talvez fosse bom lembrá-la e contá-la a quem não sabe...porque a história não se repete...mas...
Obrigada por a teres contado,foi enorme,tenho imenso orgulho em vós!
Que escândalo,sou uma tagarela...
vou estudar né?!tenho um exame sexta feira de Psi...ah!pois,e gosto ,por acaso!
Então,já que lá estiveste,levas o abraço que me liga a vós desde sempre,boa!!!muitos estragaram-se...depois,mas grande lição e,se fosses de Coimbra...duplamente,é aquela coisa que não se explica,sem fundamentalismo mas com um bocadinho de ...sei lá,nasci lá,deve ser isso!
Adorei a tua história...mas imaginei a original,sou uma leitora exigente,digo eu!
isabel

1:09 da manhã  
Blogger Leonor said...

Acerca do Americo Thomaz, tenho uma anedota, presumo que supostamente seja uma anedota, (é de certeza) engraçada para contar. um dia destes... no Eximproviso.

abraço da leonor

10:44 da manhã  
Blogger António said...

Para "Isabel":
Obrigado pelo teu comentário.
Vai aparecendo.
Jinhos

2:56 da tarde  
Blogger wind said...

Muito bem contada mais esta "história":) Incrível como consegues que se visualize tudo e nos fazes "entrar" dentro dos acontecimentos;) bjs

6:17 da tarde  
Blogger Loucura said...

E aqui estou eu a fazer uma visitinha nao va ser acusada de nao ter tempo para te ler :D
E mais uma Historia da tua vida contada de uma maneira simplesmente...singular!
beijinhos, e uma boa semana!

7:25 da tarde  
Blogger BlueShell said...

E começou bem!

As tuas narrativas trasmitam um visualismo impressionante! (acho que já me estou a repetir...)

Hoje tenho lá uma adivinha...qual é coisa...qual é ela...
Jinho terno e boa semana!
BShell

10:34 da tarde  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Querido António

Eu tenho a certeza que merecias (mereces) uma medalha!

Só pelo o traço do teu humor já MERECIAS ser MEDALHADO!!!

Como sempre, ADOREI!

Jinhos

10:40 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

POis...tenho pena que HOJE, muitos estudantes Univ. contestem e queixem quase sem razão.
É a reinvidicação por reinvidicação...
tenho pena, realmente tenho pena. É que nem forças nas prnas eles têm!

BEm, o que eu te queria dizer é que, em atitude foste um grande.
E sabes...eu sou assim.
Ainda no outro dia apareceram uns marmanjos lá no largo da nossa escola (faculdade). Os meus colegas e amigos todos aflitos, sem saberem por onde fugir. E eu fiquei como tu... a olhar para eles com cara de policia!!...
E pronto, foram passando por mim sem nada dizer ou fazer!

E é, e foi sempre essa atitude que eu tive em acções conturbadas!!!!

Bjo para ti, Grande contador de estórias!!!!
=)

12:56 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Talves por isso é que me tenham sempre apelidado de Maria-Rapaz...
por essas e por outras!

12:57 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bem, António no seu melhor!! Estou cada vez mais "viciada" ;) As tuas descrições são fantásticas, e quando damos conta, estamos ali, no meio de tudo! Parabéns mesmo! Beijokas * e boa semana :)

3:35 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pois sou, e com muito gosto..Pessoas com muito juízo deprimem-me:) Beijos, priminho querido*

4:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Mais uma narrativa saborosa, um episódio contado com tanto espírito que nos sentimos "lá". Um beijo e boa semana :-)

11:46 da tarde  
Blogger Caiê said...

António:
Se há coisa que está na minha listazita de ódios são os fascistas. e olha que tenho uma lista pequenita...

beijinhos!

é sempre com grande prazer que venho aqui ler as tuas histórias, apesar de me chamares malcriada.... LOLOLOL

1:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bem a continuares assim, vais ser pior que a nicotina! Já te tornaste um vício nas minhas leituras... Parabéns mais uma vez.
Jokas

1:43 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Pois é!

às vezes temos "altos e baixos" mas tudo se compõe porque há muito amor...muito. e isso ajuda a ultrapassar quaisquer problemas...
A morte do meu pai em janeiro...foi devastadora e, se não fosse ele ( o meu marido),talvez eu não estivesse aqui hoje, percebes?
Os meus poemas, um pouco tristes, t~em muito a ver com o que eu gostaria de lhe poder dar...ele merece muito mais do queo meu amor. penso sempre que o meu amor não é suficiente para o fazer tão feliz quanto ele me faz a mim.
é um homem doente (coração)...e eu tenho muito medo de o perder. Tenho horror, pânico...só de pensar nisso.

mudando de assunto...
Sei que tenho em baixo uns posts para ler. Não e esquecerei. Prometo!
Jinho, BShell

2:57 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

quem sabe a medalha do melhor contador de historias?
uma emocionante historia sem duvida e muito bem contada.
Ana Mª Costa

3:03 da tarde  
Blogger Unknown said...

Passei cá, e confesso que fiquei abismada contigo, simplesmente adore.
Beijo

4:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Infelizmente sou daquelas que apenas podem ler e tentar visualizar. Nasci dias depois do 25 de abril. Sempre tentei ver os dois lados, mas cá em casa o povo é quem mais ordenava. :) Concordo com a guevara, o pessoal hoje em dia está impávido e sereno. Por ex, na minha faculdade, está uma cambada de fascistas e ninguém os manda parar com aquele sistema absurdo. Se alguém tenta, logo a associação cai em cima para terminar com as reacções. Porque assim, não teriam o tacho que estão habituados. É duro, mas é a realidade que se passa lá naquele antro. Pagamos para nos lixarem. O que vale é que estou habituada. Apanhei com tudo o que poderia existir de mal, desde a confusão pós 25 de abril; educação no tempo da Ferreira leite .....

8:38 da tarde  
Blogger António said...

Para Ana Maria Costa:
Obrigado pela leitura e comentários que fizeste a este e outros textos deste meu antro literário...eh eh
Jinhos

9:35 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

É verdade! 31 anos, feitos em maio. :) Por isso disse dias. Sou daquelas que ainda se pode vangloriar de ter levado com um cravo na tola (por acidente). Tirando o cravo, a palmado à nascença fez o resto.
Agora uma duvida: ser-se detective virou moda?

obrigado pela atenção

12:16 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Oh António, fiquei tão preocupada com a velha!Ela melhorou?!

3:58 da tarde  
Blogger António said...

Para "azul":

Parece que foi para o Tarrafal!
ah ah ah

Jinhos

5:22 da tarde  

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