Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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domingo, julho 03, 2005

Uma noite em Londres

Em 1972 resolvi ir passar as férias num campo de trabalhos na Inglaterra.
Já tinha vinte e três anos e nunca tivera uma experiência do género.
Como iria ganhar dinheiro, com esses proventos pagaria as despesas que teria de fazer.
Naturalmente dei conta da minha intenção a meu pai e minha mãe, sendo que o primeiro se prontificou a pagar as viagens de avião, a meu pedido.
Tratei do assunto através de um organismo da Universidade de Lisboa cujo nome não lembro.
O período de labuta seriam 22 dias de Agosto no Friday Bridge Agricultural Camp, perto da cidadezinha de Wisbech, no Cambridgeshire, uns duzentos quilómetros para norte de Londres.
Como é meu péssimo hábito (e ainda por cima empurrado por minha mãe que queria que levasse mais coisas, não fossem elas necessárias), arrumei um montão de tralhas numa mala enorme cujo peso aguentava com alguma dificuldade.
Para obstar a qualquer inusitada falta de dinheiro, que eu considerava pouco provável pois ia determinado a trabalhar o que fosse preciso para ter fundos suficientes que me garantissem o essencial e algumas coisas acessórias, o meu pai emprestou-me nove contos. Assim, ele ficava mais sossegado. E eu também.
Embarquei no aeroporto de Pedras Rubras para um voo directo a Heathrow.
Ao fim de duas horas cheguei.
Ao sair do avião, vi uma senhora que era professora de inglês no Alexandre Herculano, liceu que frequentara. Era a famosa e solteirona Carolina, de quem nunca havia sido aluno, mas cuja fama de severidade era sobejamente conhecida nessa escola. Era mesmo célebre por bater com os grossos dicionários na cabeça dos alunos quando estes não respondiam a preceito às suas perguntas.
Imediatamente me ocorreu que, atrelando-me a ela, teria a vida facilitada. E logo a abordei. Acabou por se mostrar uma pessoa muito simpática que, segundo me disse, todos os anos ia a Inglaterra para não perder o contacto com a língua inglesa.
Apanhamos o autocarro para o centro de Londres onde ela se transferiria para outro transporte que a levaria a um lar de freiras, onde ficaria alojada. Eu iria, no metro, para um hotelzinho em Earl’s Court cujo nome me fora fornecido pela tal organização de Lisboa onde tratara dos assuntos.
E assim aconteceu (pelo menos comigo; com a doutora não sei).
O hotel era de qualidade abaixo do aceitável mas, pela numerosa clientela que se apinhava na sua entrada, tudo malta muito jovem e não britânica, achei que estava no sítio mais adequado.
Quando, depois de uma espera de largos minutos, chegou a minha vez de fazer a marcação do alojamento, a inglesa que nos recepcionava, bastante mal encarada, mal penteada, nariguda e com os dentes podres, perguntou:
- Single or sharing?
E disse os preços respectivos.
Como ia na desportiva, respondi:
- Sharing, please.
Decidi, portanto, partilhar o quarto com alguns outros visitantes da capital do Reino Unido.
Paguei e dirigi-me ao quarto indicado. Sem chave. Como aquilo era muita malta, a gerência não autorizava que os clientes do “sharing” usassem esse instrumento que sempre me parecera fundamental, quanto mais não fosse, por razões de segurança.
Mas, como diz o provérbio, em Roma sê romano.
Seriam umas quatro da tarde. O tempo estava bonito, com sol. E pude ver que o enorme quarto que me fora destinado tinha nove camas com roupa lavada, uns quantos guarda-fatos e um lavatório com uma torneira. Nem sabão, nem toalhas, nem nada. Mas, pensando bem, se eu ia para um campo de trabalhos, qual proletário, tinha de começar a habituar-me a algumas incomodidades.
É assim que se fazem os homens, cogitei.
Reparei que algumas camas já tinham sobre elas malas ou sacos. Sinal de que tinham sido “reservadas” por alguém. Fiz o mesmo. Coloquei a bagagem sobre o leito que me pareceu melhor posicionado e fui conhecer a mundana cidade de Londres.
Apanhei o metro para Piccadilly Circus e depois fiz a pé o circuito Regent Street, Oxford Street, Charing Cross Road, Shaftesbury Street com regresso à praça donde partira. Pelo caminho, ainda vi um espectáculo com golfinhos e pude apreciar quão cosmopolita era, de facto, Londres. Havia gente de todas as cores, raças, nacionalidades, enfim…um mundo.
Já era noite quando me meti no Soho onde visitei a que era, na época, a rua mais popular da Grã-Bretanha: Carnaby Street. Jantei e depois andei a visitar umas casas de espectáculos, todas de muito mau gosto qualquer que fosse a perspectiva pela qual fossem analisadas (ai Paris, Paris…).
Só pouco antes da meia-noite apanhei o metro (o último, segundo me disseram) para regressar ao hotel (chamo-lhe assim porque não me ocorre um termo mais adequado; espelunca seria excessivo).
Subi as escadas. A porta do quarto estava entreaberta e a luz apagada. Acendi-a. Logo ouvi uns urros que não entendi, ou melhor, entendi perfeitamente que significavam: Apaga a luz! Fi-lo imediatamente, mas o pequeno intervalo com o compartimento iluminado foi suficiente para ficar assustado.
As camas já estavam quasi todas ocupadas. E, de sob os lençóis, emergiam abundantes adornos capilares. Toda a cena me fez lembrar as casernas de trabalhadores de minas que vira num ou dois filmes.
Mantive a porta aberta para que a luz do corredor iluminasse um pouco o local onde deveria estar a minha mala. Mas que raio! A minha cama já estava ocupada! Pé ante pé, fui caminhando o mais silenciosamente possível procurando a bagagem. Finalmente vi-a arrumada a um canto.
E cama? Acomodei-me numa que estava sem “marcação” e ficava perto da porta.
Com a máxima cautela, lavei as mãos e a cara, e limpei-as ao lençol para não abrir a mala. A higiene dental limitou-se a um gargarejo. E, sorrateiramente, encafuei-me sob a roupa só com as cuecas vestidas.
Estava o sono a chegar quando entrou outro retardatário. Acendeu a luz e…bom, desta vez vinguei-me e também disse um palavrão qualquer em português.
O pior é que, quando o sujeito foi fazer as suas lavagens, como a minha cama de recurso ficava mesmo ao lado do lavatório, salpicou-me todo com água. E na zona do travesseiro, quer dizer, na cabeça e na cara.
Passado algum tempo, estava eu quasi, quasi, a dormir, entra outro. Este não fez barulho. Só fez chuveiro para cima de mim, o desalmado.
E ainda apanhei uma terceira molhadela antes de adormecer.
Quando acordei, já a luz entrava pelas janelas. Olhei para as várias camas e estavam todas ocupadas. Toda a malta a dormir. Entretanto há outro que levanta a cabecinha e também espreita. E mais outro. E outro ainda. Agora, embora alguns dos meus parceiros tivessem umas caras patibulares, senti-me mais à vontade.
Levantei-me, abri finalmente a mala e lavei-me o melhor possível.
Concluído o ritual (que não foi muito canónico, como devem calcular), pisguei-me o mais depressa que pude para ir a uma conhecida estação do caminho de ferro apanhar o comboio que me levaria a Wisbech.
E o que me aconteceu no campo de trabalhos fica para vos contar noutra ocasião.

27 Comments:

Anonymous Anónimo said...

LOL, que porreiraço!

Bem gostava de ter tido umas oportunidades dessas...mas menina com pouca idade é 'proibida' pelo pai!

Claro, agora já é tarde, porque tenho que finalizar outros objectivos...

Beijo! =)

3:27 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ó António,és um corajoso ...ficou-te bem...e que sorte hem?,podias ter acordado com um barbudo na cama,ah!ah!...banhadas ...intermitentes?não foi?ouve,que delírio...borrifado a meio da noite,txeee!!!
Mas tenho que te dizer,Londres tem sítios muito giros para se ficar(tu também sabes!)e tem coisas muito giras,eventos únicos...tu sabes também,bolas és exímio organizador de viagens(com tasse,ah!ah!)mas Paris é uma coisa diferente...a ti mandaram-te logo para o Crazy Horse,claro,isso não me esqueci!!!ah!ah!
Paris é fabuloso...seja em que idade for...eu já fiz trinta,ou mais!...continuo a gostar muito de Paris!
Beijinho António
Adorei ler-te.
assino já ana,a misteriosa,pronto!

7:48 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

é com tosse!desculpa!
ana

7:49 da tarde  
Blogger Leonor said...

O teu relato lembrou-me um filme italiano que eu vi há muitos anos, que ou era de Vitorio de sica ou de felini, ou se calhar nem um nem outro, que se chamava "feios, porcos e maus". Aquilo era um horroooooooooor, mas muito bem feito, muito bem feito.

abraço da leonor

7:57 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Fiquei agarrada á história!! ;)
Quando vem a continuação??


Histórias de vida, são das melhores coisas que se podem ler, e Tu, parabéns! escreves como ninguém! Adorei ;)

8:30 da tarde  
Blogger wind said...

Aguardo a continuação porque me ri imenso com este post:) Muito bem escrito;) beijos

9:35 da tarde  
Blogger António said...

Para a Enigmática Ana (lixei-te..eh eh ):
Obrigado pelos teus engraçados comentários.
Eu sei que Londres é uma cidade monumental. Mas, nos diversos bairos as casas são todas iguais, como tão bem se vê nos filmes. E isso tira-lhe a continuidade da sumptuosidade que se vê em Paris.
Em termos culturais também. Vi lá a peça "Jesus Christ Superstar" no Albert Theater.
Mas...ai Paris, Paris!
Jinhos

10:01 da tarde  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

António

Como sempre a boa disposição das tuas histórias. São sempre fantásticas, vividas e contadas de forma única por ti.

Beijo grande

10:14 da tarde  
Blogger António said...

Minha querida Leonor:
Não exageremos!
O meu hotelzinho em Londres era bem melhor do que aquela imunda espelunca onde vivia a numerosa família comandada pela personagem interpretada pelo Nino Manfredi (falecido no ano passado).
Já agora, o "Feios, porcos e maus" foi realizado em 1976 por Ettore Scola.
(com uma buscazinha na Net faz-se logo um figuraço...hemmm?)
Jinhos

10:18 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Fico muito contente por estar a ser lida com tanta atenção. Gostava só de relevar uma coisa: ficção é apenas isso, ficção. O que eu vivo é, provavelmente, mais interessante, mas não me faz rir tanto...

9:35 da manhã  
Blogger Caiê said...

Palpita-me que esse sharing ainda vai dar muita partilha... eh eh eh! Se não morássemos tão longe ainda te convidava para um cafezinho para partilharmos as nossas experiências estrangeiradas... Lol! ;)

1:38 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

É que só me apetece dizer:Obrigada, obrigada, obrigada...
E até já viste uma peça no Royal Albert Hall(também me apetece dizer:que inveja, que inveja , que inveja...!).

2:23 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Amigo António: insisto que deve escrever um livro. Se eu tivesse um com todas estas histórias, lê-lo-ía de um fôlego.
Vou ficar a aguardar.
Abraços

6:31 da tarde  
Blogger António said...

Para "azul":
Obrigadinho pelo comentário.
Mas nunca estive no Royal Albert Hall.
A peça "Jesus Christ Superstar" via num teatro que, salvo erro, se chamava Albert Theatre.
Como curiosidade:
Em 1973 ainda Norman Jewison não tinha feito o filme, se bem me lembro.
Jinhos

10:21 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

António, mas que cidadão do mundo...tu me sais! Aventureiro!

Uma vida de recordações, é algo muito bom, principalmente quando
as recordações são boas. Beijinhos

11:06 da tarde  
Blogger Unknown said...

nunca te esqueças em londres procuras a madame venetre..é uma portuguesa que aluga quartos e tem os melhores pequenos almoços que possas imaginar...fantasticos.
a tua historia fabulosa... é o que se chama uma noite humida e nauseabunda(imagino)

12:19 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Olá António! Vim deixar um beijo enorme!!!

9:32 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ok! Deixo então mais um... um beijinho!! ;)

10:25 da tarde  
Blogger Estrela do mar said...

...eu é a 1ª vez que aqui estou ...e estive a ler esta história real...e fartei-me de rir...às vezes metemo-nos em cada uma:)...gostei do teu espaço...continua...que eu sempre que puder darei cá um "saltinho"...

Beijo.

2:35 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

passei por aqui através de outro post e o que em primeiro lugar o que me chamou a atenção foi o facto de ser da Maia, eu tambem sou.o meu comentario é para o texto que me prendeu ao ecran o olhar e a imaginação andou pelas letras que escreveu.
Ana Mª Costa

9:43 da manhã  
Blogger António said...

Para a maiata Ana Maria:

Obrigado pela visita e pelo comentário.
Vai aparecendo sempre.
Jinhos

10:05 da manhã  
Blogger Caiê said...

Pois, tens razão... nunca se sabe... ;)

1:44 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Sr acessor?...ah!pronto,é ccnsigo mesmo!!!
Quando estiver envolvido numa organização com destino de ou por Paris...diz-me?ah!ah!não perderia isso por nada...
beijinho grande,escreves divinamente!
Isabelle(não Adjani,olha para ele!ah!ah!)

9:37 da tarde  
Blogger António said...

Para "Isabelle":
[Tanto anónimo! uffff]
Obrigado pela visita e pelas palavras escritas.
Jinhos

9:45 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

E depois eu é que sou doida e anarca! ai ai... :)

9:06 da tarde  
Blogger Heloisa B.P said...

Fico a espera do resto!
Li de um folego so' e com UM SORRISO NOS LABIOS!!!!!!!!
Saudacoes!
Heloisa
(em Londres!_nao em "hotel"!...)
***************************

11:57 da tarde  
Blogger Zica Cabral said...

O que nós passamos quando somos novos e sem experiencia!!!!!Aconteceu-me algo semelhante (mas não tão mau) em Roma quando tinha 17 anos..........Mas são experiencias que nos enriquecem e nos ensinam a não ser tão nabos para a proxima vez.
Beijinhos Zica

9:03 da manhã  

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