Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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domingo, janeiro 01, 2006

O viúvo - parte I

José Luís estava sentado num confortável sofá da sala do seu apartamento de três assoalhadas, na Maia, a pensar como tinham sido complicados os últimos quinze meses.
Depois de muitos anos de uma vida com qualidade, a sogra tivera um acidente vascular cerebral que a deixara paralisada do lado direito e praticamente sem voz. Ele e a mulher, Margarida, ambos reformados, passaram a ter que carregar com o trabalho de dar assistência à D. Josefina que, na altura da eclosão da doença, tinha setenta e sete anos.
Mas bem pior fora o mal que, em quatro meses, fizera com que a sua companheira durante trinta e quatro magníficos anos fosse consumida progressiva e velozmente por uma neoplasia gástrica.
O som da campaínha fê-lo parar com o visionamento do filme maldito e levantar-se para abrir a porta ao seu grande amigo.
- Como estás hoje, Zé? – perguntou o João Manuel enquanto entrava e dava uma amistosa palmada na face do anfitrião.
- Não muito bem! – respondeu o Zé Luís – ainda bem que vieste; a solidão conduz-me para pensamentos depressivos.
E esfregou com a mão a parte superior da cabeça sem pêlos do amigo, como gostava de fazer. Só nas têmporas e na nuca havia cabelos. Muito brancos, diga-se.
- É tudo muito fresco! – interveio o amigo – e eu percebo bem como uma companhia é fundamental nestes momentos. A Rosa não está cá?
- Não! Disse-lhe para não vir hoje à tarde – esclareceu o José – ela foi espectacular durante estes quatro meses. Merece um fim-de-semana mais prolongado para descansar e tratar das coisas dela.
- Totalmente de acordo! Foi de uma dedicação maternal. Tiveram uma sorte tremenda com a empregada que arranjaram – comentou o João Manuel.
- Tenho de a recompensar. Mas tu e a Mina também fostes uma presença importantíssima – elogiou o viúvo.
- Vocês precisavam de ajuda. Nós tínhamos tempo e vontade de apoiar. Afinal para que servem os amigos? – justificou o João.
- Mas vocês excederam-se! – afirmou, peremptório, o Zé Luís.
- Deixa! – tentou desviar o assunto o visitante – dormiste bem?
- Tomei umas pastilhas e dormi optimamente. Mas não deixo de pensar no sofrimento porque passou aquela mulher tão boa e sempre tão alegre. Cheguei a pensar em pedir uma eutanásia, mas não tive coragem de fazer a proposta ao Dr. Macedo. Sei que ele é católico e, portanto, nunca iria aceitar ser actor numa cena dessas – confessou o homem todo vestido de negro.
- Tu chegaste a abordar o assunto comigo e eu disse-te isso mesmo – corroborou o velho colega bancário – não queres vir tomar um café para espairecer?
- Dizes bem! – anuiu o Zé enquanto olhava o relógio – vamos a pé.
- Claro! – apoiou o amigo – apesar de estarmos em Agosto, a temperatura está amena.
- Faz bem à alma caminhar e conversar um pouco.
- Ah! E já informaste a tua sogra do que aconteceu? – interrogou o visitante.
- Ainda não! Quero fazê-lo pessoalmente e anteontem foi o passamento e ontem o funeral. Hoje não estava com disposição para isso. Acho que irei lá amanhã.
E os dois saíram não sem que antes o dono da casa desse uma olhadela à gaiola com os dois canários cujo canto muito gostava de ouvir.

José Luís Novais era um homem de cinquenta e oito anos. Com 1,70 metros e 72 quilos de peso, abundante e bem penteado cabelo grisalho já bastante claro, depois de completar o 7º ano dos liceus fora cumprir o serviço militar para Luanda de onde regressara em finais de 1969. Rapidamente arranjou um lugar como bancário no Porto, sua terra natal. Aí conheceu uma colega poucos meses mais nova, Margarida Cunha Dias, jovial e dinâmica, com 1,58 metros de estatura e que, embora um pouco anafada, tinha uma silhueta muito agradável. Aloirada e com uns belos olhos azuis, fazia-se notar pela sua alegria e bom humor constantes. No Verão de 1971 casaram. Nunca tiveram filhos, o que lhes facilitou uma boa vida e bastantes viagens turísticas.

Zé passava o tempo no ginásio, dando longas caminhadas a pé, ouvindo música, lendo jornais e algumas obras literárias, na Internet, onde tinha um blog, e escrevia umas crónicas semanais para um pequeno jornal local.
Guida era filha única, mas Zé Luís tinha um irmão quatro anos mais velho que, quando estudava Letras em Coimbra conheceu aquela que mais tarde viria a ser sua mulher. Maria Fernanda e Manuel João formaram um casal de professores e viveram sempre na cidade do Mondego. Os seus dois filhos já são hoje homens casados.
Quando tinham cinquenta anos de idade, ambos os membros do casal de bancários foram convidados a ir para uma situação de pré-reforma.

O mesmo aconteceu com o grande amigo e colega de ambos, João Manuel Pinto, dois anos mais velho, alto de 1,75 metros e magro, e que constituía com a mulher, Hermínia Magalhães, com menos três anos que o marido e professora primária, os grandes parceiros do casal originário do Porto mas vivendo no T2 da Maia.
Mina tinha 1,65 metros e era magra; fora loira, mas agora os cabelos eram todos brancos e sem pintura, curtos e sempre bem penteados. Mantinha os belos olhos azuis. João e Mina tinham três filhos, Paulo, Sofia e Susana, já casados e que lhes deram, até ao momento, três netos.
Vivem em S. Mamede de Infesta, relativamente próximo, portanto.

De regresso ao apartamento de Zé Luís, os velhos companheiros prosseguiram a longa conversa que tinham mantido mas, por condução do João, falando o menos possível dos tempos tristes. João Manuel sabia que o amigo, sem mulher, sem filhos, sem pais, com o irmão longe e a sogra num lar na zona de Santo Tirso, precisava como nunca de companhia.
- Ó Zé! Vou telefonar à Mina e dizer que vais lá jantar connosco – convidou o João.
- Ó pá! Já vos dei maçadas mais que suficientes. Há um limite para tudo. Vocês precisam de descansar. Eu vou ali fora comer uma coisa ligeira e depois venho fazer aqui umas pequenas arrumações. Tomo o comprimido e adormeço como um anjinho papudo – disse, bem disposto, o Zé.
- E não vais cair em melancolia?
- Não! Estando com a cabeça ocupada não há problema. E sabes muito bem que já estava preparado para isto. Quando a morte é súbita exerce uma acção muito mais violenta nas pessoas queridas.
- Tu é que sabes! Mas nós teremos muito prazer na tua companhia – concluiu o visitante.
- Amanhã à tarde vou falar com a minha sogra e vou agora chamar a Rosa para vir cá de manhã para combinarmos as coisas para o futuro. E dar-lhe um dinheiro extra.
- É altura de a D. Josefina saber a verdade. Mas ela já está
bem preparada para este desfecho – sentenciou o João Manuel.
- Sim! Mas dizer a alguém que a filha morreu é sempre uma tarefa complicada e bem pior deverá ser ouvir isso – disse, pensativo, o recém-viúvo.
- Já estudaste a forma de abordar o assunto? – perguntou, curioso, o João.
- Já defini a forma de abordagem. Depois, improviso. Não vale a pena preparar as coisas com muita minúcia porque acaba por sair tudo ao contrário – disse, sorrindo.
- Isso é verdade! – corroborou o outro – olha, então vou andando.
- Quando quiseres aparecer por cá, já sabes: é só fazer um telefonema para confirmar que estou e não tenho nenhum compromisso.
- A missa de 7º dia é na segunda às sete, não é? – perguntou, para simples confirmação, o visitante enquanto ía vestindo um blusão fresco.
- Exactamente!
- Tem uma boa noite! – despediu-se o João.
- Dá cumprimentos à Mina. E passem bem! – rematou o Zé já com o amigo a entrar para o elevador.

19 Comments:

Blogger wind said...

Começas o ano com mais um bom conto, do qual aguardo a continuação. Já definiste as personagens no meio desta parte. É uma das coisas que admiro em ti:) Beijos e bom ano*

4:21 da tarde  
Blogger lena said...

belo conto e como o estruturaste bem desde o principio,
posso dizer que me comoveu, lembrei-me de situações passadas e da partida de alguém muito querido, subitamente , como se desligasse uma luz, difícil de não lembrar.

quero dar-te os parabéns ,não “gostas” muito de poesia como dizes, mas quase que acertaste em tudo, fizeste uma leitura quase perfeita do que quis dizer,
embora não tenha partido ainda de todo, já se nota a ausência e a desilusão entrou apesar da porta estar “trancada”

vou querer seguir a continuação deste conto, que achei deveras interessante

começaste bem o ano, parabéns António

ainda te vou ver editar algo certamente

contunuo a adorar ler-te, surpreendes-me sempre

beijinhos meus e um abraço

lena

7:31 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Fico á espera do desenrolar. Gostei do ínicio, da caracterização das personagens. Beijo

10:41 da tarde  
Blogger Ovelha Negra said...

Cativaste a minha leitura. Confesso que sou um pouco maníaca por leitura Nesta semana li 3 bons livros, já que não tenho tempo para ler assim que começarem as aulas, pelo menos não da forma como gosto, de enfiada!
Agora vejo que já posso ler um pouquinho de cada vez, e que não posso saltar partes, nem ficar até tarde e más horas agarrada ao papel...tenho mesmo de aguentar que a tua escrita venha aqui ter ;)
Gostei muito do que li, sem dúvida que tens imenso jeito, gosto da forma como caracterizas as personagens e como já fizeste com que ganhasse simpatia por elas.
Parabéns e um óptimo 2006.
Beijocas

11:27 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ano Novo, novas histórias.
Apesar de ter lido “O Viúvo” um pouco antes das oito horas pela primeira vez, fiquei sem palavras! Para mim a história é tão real. Os nomes das personagens, as doenças, incrível coincidência!
Estou a gostar!
A descrição como sempre, tão perfeita, é pena esta história não ire para cima de um palco! Metade do trabalho, está feito!
Parabéns, é bom começarmos o ano com tão boa leitura!

Um beijo,

GR

1:38 da manhã  
Blogger António said...

Para "GR":
Obrigado pela visita.
E pelos comentários.
A história que imaginei inicialmente, depois de começar a escrever já começou a sofrer alterações. E prevejo mais...
Vamos ver como vai ficar no final!

Beijinhos

10:10 da manhã  
Blogger amiguita said...

Um bom 2006.

Beijinhos Tânia

10:42 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Feliz 2006! Este conto de início de ano parece-me um pouco obscuro... espero continuação! :)

1:08 da tarde  
Blogger SFeneacoach said...

rectificação: Obscuro o tema e não a escrita!!!!!!!! ;)
Beijinhos!

5:04 da tarde  
Blogger António said...

Para "sonamaia":

Obrigado pela visita e pela análise.
Tinha uma história esboçada mas conforme vou escrevendo vou alterando a história.
Já não sei como vai acabar.
Assim é suspense até para mim...eh eh eh

Beijinhos

6:52 da tarde  
Blogger Leonor said...

confesso a minha surpresa.
cliquei no eu sou louco e esperava qualquer coisa sobre o novo ano e coisa e tal... emergulhei no drama do jose luis.

e se tivesse a historia toda iria ja á ultima pagina para ver o desfecho, rsss

assim tenho que esperar...

abraço da leonoreta

9:37 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Gostei do conto....

A mim nem os comprimidos me valem: tenho pesadelos horríveis.

Beijos mil
BShell

10:07 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Também andei a ler os textos em atraso e ...claro...gostei. Agora ainda estou atarefada...mas quando posso...não deixo de vir aqui, claro!
beijo-te, BShell

11:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Os personagens principais foram apresentados. O desenrolar da história e o fio condutor da mesma ainda não se alcançam porque podes mudar o curso dos acontecimentos e a história evoluir num outro sentido qualquer. Por isso, apenas uma nota: gostei do que li e principalmente da forma como escreves: muito clara, muito rica e muito cativante. Bicadinha nos teus óculos (ha, ha, ha) e continuação de muita inspiração intelectual e sensitiva.

2:50 da manhã  
Blogger Luís Monteiro da Cunha said...

Estou à espera... venha o prato principal, estes são aperitivos...lol

Abraço

2:54 da manhã  
Blogger Heloisa B.P said...

Ca' estamos; caminhando Atraves DELE8 o mais verticalmente possivel!
Que Seu CAMINHAR o CONDUZA AO DESTINO DESEJADO!
ABRACO AMIGO!
_ESTOU LENDO!
Nao vou comecar o ANo repetindo os mesmos ADJECTIVOS (Ja' OS CONHECE, NO QUE SE REFERE AO SEU TRABALHO ESCRITO!)!
Assim, deixo-LHE UM AMPLO SORRISO!!!!
Tentarei voltar tantas vezes, quantas eu possa e, me nao torne "uma chata"!!!!!!
.......................
Heloisa.
****************FELIZ NOVO ANO*, *ANTONIO*!!!!!!!!
*******************

6:28 da tarde  
Blogger Leonor C.. said...

Personagens bem descritos mas, para começar, anteve-se uma história triste. Juro que ainda não li mais nada para não ser influenciada. Vou continuar...

9:23 da tarde  
Blogger Mitsou said...

Pois, o prometido é devido mesmo que atrasado. Comecei a ler o conto. Conto? Qual conto? Romance, se faz favor! Até já :)

12:37 da manhã  
Blogger Xuinha Foguetão said...

Vou para a parte II. ;)
Estou a gostar... como sempre!

12:26 da tarde  

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