Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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quinta-feira, dezembro 08, 2005

A avó Joana

Adorava ouvir as histórias que a minha mãe e as suas três irmãs contavam dos meus antepassados.
E algumas das que mais gostava eram as do casal Luís de Brito e Joana.
Joana era a avó paterna da minha mãe.
Viveu no sec. XIX, em Segadães, juntinho da vila raiana de Valença do Minho.
Obviamente que eu nunca a conheci, nem mesmo nenhuma das quatro netas.
De aparência franzina, era uma verdadeira mulher eléctrica, com um potencial energético de 100.000 volts.
Ela e o marido eram proprietários de uma padaria e pastelaria.
E como já adivinharam, ela era quem punha e dispunha.
Ainda por cima, o Luís era a preguiça personificada. Bem mais corpulento que a mulher, pelava-se por não fazer nada. E, de facto, também não tinha muitas tarefas atribuídas. Primeiro, porque a Joana tratava de tudo e ainda tinha alguns criados que a ajudavam nas várias tarefas; segundo, porque não confiava no seu marido.
Talvez por não ser suficientemente solicitado, o Luís acabou por arranjar uma amante.
A coisa não durou muito: uma noite quando o homem chegou a casa encontrou umas malas com todos os seus pertences na rua.
E teve de pedir desculpas, de joelhos, com renovadas promessas de fidelidade conjugal, para poder voltar a entrar em casa. Mas, durante uns dias, viveu na habitação de uns parentes.
- Mas isso não é nada de especial! – dirão os leitores.
E tem razão. Ainda hoje esta é uma prática corrente. Mas serve para definir melhor as personalidades de cada um.
Era hábito da casa fazer o pagamento à maior parte dos fornecedores, que eram do Porto, no início de cada mês.
Pois quem ía a cavalo, lá de perto da fronteira até à Invicta, com um pistolão e uma saca cheia de dinheiro à cintura e dois criados para ajudar era ela mesma, a avó Joana.

Mas que têmpera!
Como toda a burguesia dos meios rurais, tinham os seus terrenos para cultivar uns produtos hortícolas, plantar umas árvores de fruto e ainda para a criação.
De vez em quando matavam um porco.


Eu tive a sorte de assistir a muitas matanças, tendo todos os rituais ainda gravados na minha memória.
Eram vários homens a lidar com o bicho. Deitavam-no numa tosca mas resistente mesa de madeira, de pés curtos, de modo a que o leito ficava a uns trinta centímetros do chão e longa, para o animal ali ficar estendido. Depois de convenientemente amarrado com fortes cordas e com os carrascos sentados em cima dele, o matador, num golpe certeiro, enfiava um facalhão directo ao coração. Morte rápida para minimizar o sofrimento do bicho e evitar uns abanões que atiravam toda a gente ao chão. Uma vez vi o porco a soltar-se e correr com a faca toda espetada no peito: o chefe da equipa falhara o alvo.
Depois, eram queimados os pêlos com palha a arder, lavada a pele com água, sabão e pedras com asperezas para fazer a barba ao corpo da besta o mais bem escanhoada possível, senão o toucinho ficaria com a couraça pouco lisa.
A seguir procedia-se à abertura do cadáver ao longo de toda a zona ventral, removiam-se as vísceras, que eram quasi totalmente aproveitadas e, finalmente, era pendurado pelas patas traseiras e com o interior cheio de ramos de loureiro para escorrer todo o sangue, durante uma noite.

Na manhã seguinte fazia-se o desmancho completo.

Mas voltemos à matança do suíno do casal.
Depois de cumpridos todos os passos que atrás descrevi, havia um criado que ficava de noite a guardar o reco, não fossem aparecer sorrateiros ladrões e levá-lo.
Mas, uma vez, não havia nenhum empregado que estivesse disponível e a patroa determinou que fosse o Luís a cumprir tal tarefa.
- Ó homem! – avisou várias vezes – tu abre-me bem esses olhos, ouviste? E não adormeças!
- Ó Joana! Eu sou responsável; sei muito bem o que tenho de fazer – procurava ele sossegá-la.
O certo é que, a meio da noite, a avó Joana acordou e achou por bem ir ver se o seu marido estava a cumprir a tarefa correctamente.
Quando chegou ao local, o porco estava intocado, mas o pobre do Luís não aguentara os ferozes ataques do João Pestana e dormia soltando um ronco de tempos a tempos.
E que fez a mulher? Acordou-o? Não!
Pegou num facalhão e cortou a cabeça do porco, escondendo-a em sítio seguro.
Quando o sol despontou, ela levantou-se e foi direitinha ao local. Lá estava o decapitado com o Luís ainda a dormir como um justo.
- Ó Luís! Acorda! Os ladrões levaram a cabeça do porco!
E continuou:
- Estás a ver? Não posso confiar em ti! Adormeceste em vez de tomar conta do bicho!
E o pobre do homem acordou estremunhado e olhava com cara de basbaque, ora para o pescoço sem cabeça ora para a mulher que se ria a bom rir.

Tiveram quatro filhos, dois rapazes e duas meninas.
Que conste, nunca mais houve ninguém como a Joana na família, mas o meu avô Abel e o primo Zé, ambos já falecidos, eram cópias bastante fiéis do avô Luís.

31 Comments:

Blogger Su said...

adoro ler tuas histórias
obviamente q não conheci a avó Joana... mas gostei de saber q era uma mulher com um garnde potencial energético:)))
é verdade, tão bem descrita a matança do porco, que aqui deste lado do mar se faz, nesta altura de natal (eu não assisti a muitas, ainda tenho os gritos do porco nos ouvidos..)
e amei o final do suíno do casal
gosto de tuas histórias

jocas maradas de tempo

6:50 da tarde  
Blogger Leonor said...

ola antonio.
sou suspeita para falar de gente pequena e electrica, principalmente quando está com a furia.

adorei a descriçao da matança do porco embora ficasse a querer mais pormenores sobre o seu desmancho.

abraço da leonoreta

7:53 da tarde  
Blogger Leonor said...

antonio, dizeres que a minha escrita tem laivos do poeta espanhol luis de gongora deixa-me assim sem saber o que dizer...

tomara eu, tomara eu...

abraço da leonoreta

10:23 da tarde  
Blogger António said...

Para "sonamaia":

Obrigado pela tua visita a casa da minha bisavó Joana.
Às vezes parece que não temos tema para escrever mas, de repente, emerge do baú das nossas memórias uma personagem ou uma história que parece merecer que sobre ela se escreva.


Beijinhos

10:24 da tarde  
Blogger saltapocinhas said...

e tu sais a quem? à bisavó ou ao bisavô?? assistir à matança do porco, mas que maldade! Eu e os meus primos fugimos para bem longe e só voltavamos quando estava tudo acabado e começava a desmancha...és mesmo sádico!

10:27 da tarde  
Blogger saltapocinhas said...

sugestão do dia: mudar o nome do blog de "eu sou louco" para "eu sou sádico"

10:30 da tarde  
Blogger wind said...

Bem, embora muito bem contado, confesso que me arrepiei com a matança do porco. É algo que sempre me fez impressão. A D. Joana era mesmo "o homem" da casa.lololol. beijos

10:55 da tarde  
Blogger Caiê said...

As avós, bisavós foram para mim mulheres essenciais... Gostei de ver que tens recordações vivas desta mulher de fibra!
Abraços! :)

11:52 da tarde  
Blogger Maria Carvalho said...

Gostei imenso desta história linda. Também adoro ouvir as histórias que os meus pais contam dos seus antepassados. Tanta coisa bonita que perdurará na nossa memória. Beijinhos, bom fim de semana para ti.

12:21 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

António, fui contigo à matança do porco, e desta vez, não fugi para longe para não o ouvir gritar..., porque estava lá a tua avó Joana! Muito gosto de aqui vir ler as tuas histórias. Beijo

3:27 da tarde  
Blogger SFeneacoach said...

Essa avó Joana! Que mulheraça! Gosto de pessoas assim: de fibra! ;)

7:21 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A tua bisavó Joana era da mesma têmpora da minha bisavó materna. Dizem que a minha até tinha a lata de, em público, apertar as orelhas ao meu bisavô quando ele se portava mal. São personagens de um tempo que não se repete. Os tempos eram violentos e agressivos, de pouca instrução mas de muito trabalho. Mas "elas" eram autenticas matriarcas, peças de uma quase divindade que ninguem ousava questionar. P.S. - Apesar de gostar sempre de ler o que escreves, desta vez passei a matança do bicho. Quanto ao resto da história...uma grande história, como sempre!!!!Bem escrita, bem lida.

7:47 da tarde  
Blogger Leonor C.. said...

Adoro esse tipo de histórias. Olha que essa da mulher pequena com potencial energético de 1000.000 volts disse-me qualquer coisa... Acho que conheço uma "miniatura" parecida...

Essa descrição do porco pôs-me os cabelos em pé! Nem que me pagassem!...

Beijinhos.

Bom fim de semana!

11:09 da tarde  
Blogger Leonor C.. said...

Enganei-me nos volts! Queria dizer 100.000! Vês como tenho razão!

11:11 da tarde  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Querido António

Adorei a tua história (como sempre).
Mas sou incapaz de assistir a uma matança de porco. Fujo para bem longe - de outra forma, fico doente - doente fico na mesma, mas um pouco menos.

Contada com todos os pormenores.

Parabéns :)

Beijinhos

Bfs

11:50 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Só hoje tive oportunidade de ler estes «retratos de família». Não só são narrativas, estamos a “ver” exactamente a história a correr nas linhas que lemos, as imagens!
Penso que todos nós tivemos membros da família interessantíssimos, somente algumas pessoas dotadas, conseguem ir à História, procurar as histórias!
Tiveste uma família riquíssima, um grande músico, mulheres de grande força e verticalidade! Esta família tem também um grande escritor, chamado António.
A avó Joana, é o orgulho da Mulher portuguesa, num país que era feito por homens!
Parabéns, à Avó JOANA e também ao seu bisneto.

Bjs,

GR

11:05 da manhã  
Blogger lena said...

sabes descrever tão bem as tuas emoções que conseguir visitar a tua avó Joana, e entar nas tuas memória viajando nas tuas palavras

que bom ler-te sempre, toca-me a alma de doces recordações também

beijinhos meus

lena

12:51 da tarde  
Blogger António said...

Para "GR":
Obrigado pela visita à padaria e pastelaria da minha bisavó Joana.
eh eh
Curioso como este nome está na moda, de novo.
E ainda mais curioso é que tudo se passou num tempo em que supostamente as mulheres eram subjugadas pelos seus prepotentes e todo poderosos maridos.

Beijinhos

12:52 da tarde  
Blogger nelsonmateus said...

d modo a nã ouvir os guinchos do animal na altura em k ele é morto e desvaziado do seu sangue, há kem lhe corta as cordas vocais com 1 golpe na garganta ...

1:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Olá António,
Prazer em conhecer a avó Joana e o avô Luis. Nesta data vêm-nos mais facilmente à memória historias dos nossos avós. Paira no ar o cheiro a familia quentinha, e às suas histórias (vividas) de encantar. Sente-se o aconchego. Apetece "curtir" a nostalgia. Que saudades da avó Chica!

Beijinhos para ti e bom fim de semana

Ana Joana

4:18 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Por momentos, voltei atrás no tempo, vi um filme a preto e branco,deliciei-me.
Encheste-me de belas imagens muito portuguesas, muito nossas!
Fantástica a tua forma de contar...Belo contador de histórias eu encontrei, António.
Adorei!
Apetece-me dizer: - Conta mais!Conta mais!
:-)
Beijo e um bom fim de semana.

8:26 da tarde  
Blogger António said...

Para a "Ana Joana":

Obrigado pela visita que fizeste à padaria da minha bisavó Joana e do bisavô Luis de Brito (deste, só era quando não tinha amantes...eh eh)
Eu ainda carrego o Brito!
Chamo-me:
António Fernando de Brito Castilho Dias.
Mas o meu filho já o perdeu!

Beijinhos

11:57 da tarde  
Blogger António said...

Para a "Ana Joana":

Obrigado pela visita que fizeste à padaria da minha bisavó Joana e do bisavô Luis de Brito (deste, só era quando não tinha amantes...eh eh)
Eu ainda carrego o Brito!
Chamo-me:
António Fernando de Brito Castilho Dias.
Mas o meu filho já o perdeu!

Beijinhos

11:57 da tarde  
Blogger nelsonmateus said...

os meus pais e demais familiares ainda fazem as matanças de x em x tempo ... dá próxima vez digo-te qquer coisa!

bom resto d fim d semana

12:42 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

António, as mulheres não eram vítimas em termos de alimentação, de gestão doméstica e até rural. Mas eram seguramente vitimas de uma escravidão sexual e cultural atrofiante e claustrofóbica até há bem poucos anos. Se as nossas bisavós viessem até aos nossos tempos, aposto (o que quiseres) que preferiam ter optado por viver numa época de (relativa) igualdade do que nos tempos de outrora...Bicadinhas boas para ti. Tinhas que levar a resposta, só que tenho estado com alguma falta de tempo (fruto dos tempos modernos...hi, hi, hi - o mesmo riso)

3:40 da manhã  
Blogger Menina Marota said...

Olha a sorte que ele teve: e, se ela lhe cortava a cabeça a ele? ahahah

Bem contada a história. Adorei ler!
Um abraço e bom domingo ;)

10:04 da manhã  
Blogger Poesia Portuguesa said...

A história está fantástica.
Mas tenho que confessar que não gosto de ver matar nada, nem o porco (apesar de gostar de comer...)

Bom domingo e um abraço ;)

10:06 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Que leituras agradaveis se fazem por aqui. Beijinhos.

9:56 da tarde  
Blogger pinky said...

granda mulher! adora essas histórias de familia, que já se confundem com lendas de tão antigas que são, que maravilha!

8:37 da tarde  
Blogger Xuinha Foguetão said...

A Avó Joana era uma mulher de armas e com sentido de humor!
Tinha de ser Joana!

Eheheheheh!

Tb já assisti uma vez à matança do porco em casa da minha avó materna.
A tua descrição é me bastante familiar. Só nunca vi o porco a correr com o facalhão espetado no peito.

Beijocas.

10:07 da manhã  
Blogger heidy said...

:) Gosto deste tipo de histórias. Adoro recordações de familia.Têm cor... e estão entranhadas no nosso sangue. Gota a gota...

9:57 da tarde  

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