Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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quarta-feira, março 29, 2006

Diálogos de gente (IV) (O dorminhoco)

- Mas que raio de homem! – praguejou a Natália – este desgraçado nasceu cansado!
A mulher tinha-se levantado às sete horas e já tinha feito uma série de tarefas: lavar-se, vestir-se, preparar o pequeno almoço para os dois filhos, arrumar roupa e louça que ficaram a lavar ou a secar quando foi para a cama, acordar o Tiago e o Filipe para irem para a escola, e ainda tinha várias outras para executar antes de sair de casa às oito e meia para entrar ao serviço às nove.
O marido, calmeirão e sempre sem pressa, também devia entrar às nove, mas raramente tal acontecia. Se o fizesse com um quarto de hora de atraso já não era nada mau.
De vez em quando a Natália entrava no quarto, fazia barulho e dizia:
- Levanta-te, homem! Olha que qualquer dia ainda te despedem!
Mas isso é que era bom!
Levantar-se? O Mário?
A Natália continuou a sua labuta de formiguinha: ajudou os filhos a vestirem-se (Filipe, o mais novo, era muito parecido com o pai, e a mãe vestia-o todo permanecendo ele em pé, agarrado e ela e com os olhos fechados), chamou mais uma vez o marido e abriu a persiana totalmente para que o quarto ficasse ainda mais bem iluminado. O homem resmungou com uma espécie de grunhido, mexeu-se, mas levantar-se é que não. Ela aproximou-se do ouvido e disse:
- Olha que já passa das oito e meia.
- Humm?
- Já passa das oito e meia. Vou sair e levo os miúdos. E tu vê lá se te levantas, meu madraço!

Ao fim da tarde, quando o Mário regressou a casa já lá estava toda a família.
A mulher é que usava o automóvel pois levava os filhos à escola e trabalhava num local com poucos transportes públicos.
Ele andava de autocarro.
- Boa noite! – disse o bonacheirão pai de família.
E foi beijar a mulher que estava na cozinha.
Os dois rapazes apareceram pouco depois:
- Boa tarde, papá! – beijaram-no e regressaram ao quarto onde ambos dormiam.
- Natália! – disse o homem com um tom de voz pouco habitual.
Ela notou a diferença e, parando o que estava a fazer, perguntou:
- Que foi, Mário?
- Hoje houve chatice no emprego.
- Sim? – perguntou ela, apreensiva – então desembucha, homem!
- O meu chefe, o Matos, chamou-me ao gabinete dele e deu-me o raspanete maior de todos os que já ouvi – começou a Mário.
- Mas porquê? – insistiu a Natália.
- Hoje eu adormeci outra vez e só cheguei ao trabalho às onze horas – confessou ele.
- Meu Deus, homem! E o Matos ameaçou-te, já percebi! – avançou a mulher.
- Pois! Disse-me que, se não começar a entrar à hora contratual, me instaura um processo disciplinar para despedimento com justa causa – contou ele.
E os olhos daquele homem enorme já estavam brilhando com lágrimas nascentes.
- Mas que chatice! – disse ela – eu fartei-me de te avisar, mas tu não te esforças por te levantar a horas e cumprires os horários. Sabes muito bem que não se pode brincar com essas coisas.
- Eu sei, mulher! – e fios de água já corriam pelo seu rosto – mas é superior às minhas forças!
- As pessoas não são todas iguais, já se sabe, mas temos de arranjar um método de tu cumprires os teus deveres. Lembra-te que temos dois filhos pequenos, uma casa para pagar, e não podemos ficar sem o teu ordenado. E mesmo o subsídio de desemprego não é vitalício. E podes ter dificuldade em arranjar outro emprego. E se arranjares pode acontecer-te o mesmo – dissertou a Natália.
- Mas que é que eu hei-de fazer? Não posso ir dormir para lá!
- Deixa-te de parvoíces! Podes jantar menos, deitar-te mais cedo e eu salpico-te com água para tu te levantares. E sais ao mesmo tempo que eu e os miúdos. Se chegares lá mais cedo até é uma forma de demonstrares que estás regenerado. E descansas mais ao fim de semana – avançou Natália resoluta com uma solução.
- E a que horas achas que tenho de me deitar? – perguntou, conformado, o pacato Mário.
- Tu precisas de dormir dez ou onze horas por noite. Para te levantares, o mais tardar às oito, tens de te deitar por volta das nove ou dez. Digamos dez horas! – sentenciou a mulher.
- Mas isso é muito cedo! – pareceu chateado, o homem.
- Tu já adormeces sempre a ver a televisão, portanto passas a dormir na cama em vez de ser no sofá. E até estás mais bem instalado – rebateu a verdadeira chefe da família.
- Mas eu gosto de ouvir o som do aparelho com os tipos a falar.
- Tu dás-me mais trabalho que as duas criancinhas juntas! Raio de homem! Olha! Ligas o rádio despertador e adormeces ao som da música ou de notícias. A TSF está sempre a dá-las. Eu, quando me for deitar, preparo o aparelho para tocar às sete – decidiu, mais uma vez, a Natália.
- Eu sou um desgraçado! Se não fosses tu não sei o que seria de mim... – e o bom gigante continuou a choramingar.
- Oh meu amor! – e ela deu-lhe um beijo – eu estou aqui para te ajudar. Tu não tens culpa. És assim e não vais mudar, portanto temos de arranjar subterfúgios para ultrapassar esse defeito.
- És a melhor esposa e mãe do mundo – disse, agarrado à mulher, o Mário dorminhoco.

23 Comments:

Blogger wind said...

Que ternura de história:) Tadinho, um matulão frágil, a chorar e a precisar do apoio da mulher. Para mim os verdadeiros casais deviam ser assim, homem e mulher ajudarem-se um ao outro:) beijos

7:26 da tarde  
Blogger nelsonmateus said...

bah! vou ter k arranjar 1 mulher dessas ... :S

7:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Vês? A mulher a chamar-lhe "madraço" mas ficou aflita.
Concordo com a Wind."Os verdadeiros casais deviam ser assim!"
Fazes-me sempre lembrar de certos episódios engraçados. Este é um dos aspectos magníficos que os teus Diálogos de gente tem.
Vou contar-te porque vais achar piada.

Estava eu a trabalhar há pouquissímo tempo, ainda no outro banco, e, ouvi do meu pai, a melhor das histórias sobre atrasos na hora de entrada.
Bom, na sede do Banco (na altura ainda era no Porto) havia duas pessoas que entravam sempre, mas sempre, muito depois das 9,30 quando a hora era, como sabes, às 8,30!
Encontravam-se à entrada do prédio, corriam para o elevador e sorriam um para o outro.
Isto, durantes semanas a fio.
À página tantas, um deles, o mais velho, virou-se para o outro e depois de o cumprimentar disse: - Por mais que eu tente, isto é mais forte do que eu! Não há maneira de conseguir entrar a horas!
O outro colega sorriu e respondeu-lhe:
- Bolas! Nem me fale! Eu todos os dias prometo a mim mesmo que desta vez é que vai ser! Mas, não sei o que se passa! A minha mulher bem me acorda, mas, quando dou por mim, já passou a hora!...
E este último colega que falou saiu no 3º andar.
Despediram-se e o outro disse-lhe:
- Bom, então até amanhã!
No dia seguinte, voltaram a encontrar-se, a subir juntos no elevador e o mais novo exclamou:
- Eu digo-lhe, se um dia o director nos apanha, vai ser bonito, vai!
- Eu digo-lhe mais!... - disse o mais velho - (perdoa-me mas vou usar as palavras exactas)
- Se temos o azar do homem saber, nós estamos é bem f.....!

Uma dada tarde, foi marcada uma acção de formação e o nosso amigo mais novo, mais os colegas do departamento subiram ao 5º andar, para se encontrarem com a direcçao.
Já estavam sentados, todos, e chega a chefia toda mais uns tantos administradores.
Já estás a ver a cara do nosso amigo!
Um dos administradores dirigiu-se a ele, cumprimentou-o e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Imagine se esta reunião era às 8,30!...

Era nem mais nem menos do que um colega mais velho com que ele se encontrava, tarde e a más horas, no elevador! Era um dos administradores do banco :-)

Ficou para os anais da história aquele episódio.
Havia gente engraçadíssima naquele banco.
Muitas vezes o meu pai contava isto a rir porque o mais novo acabou por singrar, teve uma carreira brilhante mas sempre que se encontravam naqueles jantares, aquele episódio era sempre relembrado com muita piada.

Um beijo amigo, António.
És óptimo nestes teus contos do quotidiano.
Parabéns e obrigada por me teres posto mais bem disposta.
Tudo de bom! Mereces!

8:05 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pois é, António! O verdadeiro amor é assim!!!!
Gostei muito de mais este teu episódio, e a ternura que nele incutiste.
Beijinhos

8:40 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Eternos adolescentes, alguns homens!
Mas história à parte!
Há na realidade “maridinhos” assim!
Saem da casa da mamã e as esposas continuam a ser as mãezinhas mas só para o que eles querem!
Indolentes, madraços mesmos!
Além do mais egoístas, a esposa farta de trabalhar e sua exa, a mandriar! Os filhos são só dela? Quem for despedido com justa causa, não tem direito a subsídio de desemprego!
Quem não tiver boas heranças, vai viver de quê?
Se fosse por doença, nem uma palha teria que levantar! Agora por preguiça!!! RUA!
Caro Mário vai ser entregue à procedência! Lá voltava ele para casa da mamã, até ser adulto!
O casamento é feito entre dois adultos! Ajuda a esposa o marido e vice-versa!

Mas como consegues dar a volta à história e ficamos com peninha do Mário!
Davas um bom advogado!
Adorei este diálogo.
Admirável este Conto!

Bjs,

GR

9:12 da tarde  
Blogger Peter said...

Bela cena do nosso quotidiano, mas ainda há mulheres dessas?

Por indicação de pessoa muito amiga, tomei a liberdade de incluir o blog nos n/links e não estou arrependido.

10:00 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Gostei...transmite a cumplicidade marido/mulher...uma cumplicidade que passa pela tentativa de encontar solução para um problema!
neste caso é a mulher que aparece "em força"...faz uso da"razão" e não se deixa levar pelas emoções. Ele está fragilixado por julgar não conseguirultrapassar o seu problema! mas...lá está: em conjunto, os dois...encontram uma solução!
Podia ser uma situação inversa: a mulher a precisar do raciocínio f
"frio" do homem...tudo bem...
Gostei, António! Um casamento implica esse tipo de cumplicidade!
Com o carinho de
BShell*]*[*]*[*]

11:04 da tarde  
Blogger Maria Carvalho said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

7:29 da manhã  
Blogger Maria Carvalho said...

É o que faz querer comentar acabada de acordar!! Óptimo diálogo, gostei imenso. A Natália é mesmo uma querida e com ela o Mário vai passar a chegar a horas, aposto que vai tudo correr muito bem a partir daí! Acertei?! Beijinhos para ti.

7:35 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Estes bébézões, estes bébézões! Começo a acreditar que o comossoma Y inibe o desenvolvimento completo dos seres que o transportam! É que continuo sem encontrar um unico "adulto" neste grupo de seres. Às vezes até parece que são, e na primeira oportunidade... lá vem criancisse! E toda a vida tenho trabalhado essencialmente com eles!!! eheheheh

Mas pelo menos este bébézão é um queridinho. Valha-lhe isso!!!!

E as Natálias lá vão sendo mães de todos os filhos! ahahah

Beijinhos
Ana Joana

12:05 da tarde  
Blogger Leonor said...

penso que ele tem muita sorte em ter uma mulher tão compreensiva. mas que apesar de tudo nao sabe resolver o problema.
o caso é grave. precisa de médico.
a preguiça normal curava-se com uma espetadela de alfinete todos os dias á mesma hora durante oito dias no buxo da perna. seria remedio santo. ao nono dia como o cão de pavlov ele levantar-se-ia antecimpando a sensaçao da dor.

mas aqui nao. e medico.

rsssss

abraço da leonoreta

12:57 da tarde  
Blogger Clotilde S. said...

Sim, sou de Las Vegas! Como é que o António adivinhou? Obrigada pela visita .

3:59 da tarde  
Blogger Clotilde S. said...

Quanto a este seu diálogo, António, devo dizer que discordo da maioria .Não me parece nada ternurento, nem um casamento excepcional, aquele em que a mulher se desunha para trabalhar e cuidar dos filhos, enquanto o mariola do marido nem sequer se esforça por chegar a horas ao serviço.E o que mais me preocupa é o facto de casais assim , não serem a excepção nem apenas ficção na nossa realidade quotidiana. O que a mulher ganhou com a emancipação foi uma carga de trabalhos, uma espécie de vida dupla, isso sim.Trabalha fora e dentro de casa. Perdoe-me a frontalidade, mas sou assim mesmo.:)) Força para essa sua maneira de escrever!
Um abraço

4:10 da tarde  
Blogger Xuinha Foguetão said...

:)

Rica mulher!

Beijos.

5:20 da tarde  
Blogger Caiê said...

António:
um homem desses é um transtorno.
Acredita, já morei com um assim. A certa altura, nem o telefone atendia, de tanta preguiça que tinha!
Uma mulher fica cansada, farta, exausta, de ter de levar a vida TODA para a frente sózinha... e levá-lo a ele também. Afinal, quantas pessoas somos: uma? duas? uma e meia? Não pode ser.

6:18 da tarde  
Blogger António said...

Para "GR":
Obrigado pela visita.
Mário é um bom homem mas incapaz de sobreviver sozinho na cidade.
A mulher é a sua guia; uma espécie de anjo da guarda.

Beijinhos

6:55 da tarde  
Blogger Papoila said...

Bonita história de amor esta António. Estes dois vão resolver os seus problemas em paridade. Adorável o bom gigante dorminhoco! Beijo

9:31 da tarde  
Blogger António said...

Para "ana joana":
Obrigado pela visita.
Ainda não conheces todos os seres com o cromossoma Y.
Eu, por exemplo...eh eh

Beijinhos

10:25 da tarde  
Blogger SFeneacoach said...

Só me ocorre um pensamento: quando fôr "grande" não quero ser uma Natália!!!!!!!!!!!

12:25 da tarde  
Blogger António said...

Para "sonamaia":
Obrigado pela visita.
Afinal, quem tirou as férias foste tu...eh eh.
Achas que tenho um dom?
Então vou passar a assinar como Dom António.
ah ah ah

Beijinhos

9:51 da tarde  
Blogger Heloisa B.P said...

"- E a que horas achas que tenho de me deitar? – perguntou, conformado, o pacato Mário."
......................HAJA PACIENCIA!!!!!
_E...para que servem as MULHERES, senao para ser resuluts e determinadas e, ainda "MIMAR" os "meninos"?...
_MENINOS GRANDES... que dao bem mais trabalho que os MENINOS DE VERDADE!!!!!

_SITUACAO COMUM, DEScrita com a sua mestria, MEU AMIGO*!
_Fica um ABRACO!
Ca' voltarei, devagar... que nao sendo eu um "pastel assim dorminhoco"...sao as "perninhas, ja' velhinhas", que nao dao para mais!!!
_SORRINDO!
_BOM FIM DE SEMANA!
Heloisa.
********

1:39 da manhã  
Blogger lena said...

tenho que tentar dar mais horas aos meus dias António

já li hoje este "Diálodos de gente" depois voltar para comentar, mas por alto só te digo que não sei se tinha tanta paciência,
acho que todos os dias lhe deitava um copo de àgua na cara para o acordar fresquinho,

não acredites muito no que escrevi...

beijinhos e um até mais logo

lena

10:38 da manhã  
Blogger lena said...

apesar de teres um post novo eu disse que voltava para comentar os Diálogos, que são bem mais interessantes do que as palavras que vou somando no meu cantinho

não posso concordar que seja a mulher a fazer tudo e no fim dizer que é um casamento feliz.
casamento é partilha em tudo, certamente que a Nátalia vai chegar a um ponto de saturação, o amor não é só isso, tolerância, é bem mais, com o passar do tempo as coisas vão-se desgastando se não se forem limando as arestas que um dia podem dar cabo de uma relação, onde tudo indicava que era sólida

claro que não lhe deitava água, embora tenha sido a primeira coisa que pensei, mas uma conserva muito séria teria certamente, não sei é difícil opinar esta situação pois cada mulher reage de diferente maneira e talvez eu seja demasiado fria e radical, engraçado que nunca me imaginei assim: fria e radical

deve ser do dia hoje


beijinhos para ti querido amigo António que me continuas a prender com estes pequenos diálogos, acabo por os enfrentar como se um dia os pudesse ter

lena

7:17 da tarde  

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