Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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sábado, abril 08, 2006

Diálogos de gente (VI) (Mentiroso compulsivo)

Abílio e Maria do Céu esperam uma visita para jantar.
Ele está sentado num sofá da sala e ela afadiga-se a terminar a feitura da refeição com ajuda de um empregada.
Pouco depois toca a campaínha.
- É o Eng. Teles da Silva – diz ele, enquanto se levanta e caminha para a porta.
Toma o auscultador do intercomunicador e vê que é, de facto, o seu novo cliente.
- Vou abrir a porta, Sr. Eng. – fala, e logo de seguida carrega no botão.
Coloca-se à porta da habitação e aguarda que o elevador se abra. Isso acontece em menos de um minuto.
- Então muito boa noite, Sr. Eng. – saúda – é uma honra recebê-lo na minha casa. Faça o favor de entrar.
E franqueia a porta ao visitante.
- Boa tarde, Sr. Fonseca – responde o recém-chegado, enquanto entra no apartamento.
- Vamos aqui para a sala e tomamos um “drink” antes de jantar.
- Com licença – diz o Teles, enquanto entra no aposento.
- Queira ter a bondade de se sentar. Pode ser nesse sofá – indica o anfitrião.
- Qual a sua preferência, Sr. Eng.? Um Martini? Mas aqui tenho de tudo; felizmente a casa é farta – diz o Abílio.
- Sim. Pode ser um Martini – aceita o cliente.
Enquanto serve a bebida, o Fonseca não deixa de falar:
- Como pode ver, tenho aqui uma casa muito jeitosa. E sabe em que me inspirei para a decoração desta sala? Na do Prof. Freitas do Amaral com quem me dou muito bem – diz o homem.
Entretanto entra a Maria do Céu que, por pedido do marido, se adornara com as melhores jóias que tinha.
- Olhe! Está aqui a minha Maria que não me deixa mentir.
E faz as apresentações:
- Esta é a minha esposa, Maria do Céu. Este é o Sr. Eng. Teles da Silva.
O homem levanta-se e cumprimenta de mão a dona da casa.
- Muito prazer, minha senhora – diz ele – e peço desculpa pela maçada que lhe venho dar. Mas o seu marido insistiu tanto...
- O prazer é meu – responde a mulher – e não é maçada nenhuma, antes pelo contrário. Gosto de ter convidados em casa.
- Agora podem sentar-se – diz o vendedor.
E continua:
- Também conheci o Eng. Amaro da Costa, mas com esse não tinha tanta confiança – prossegue o Abílio.
- Também faleceu muito novo! – intervém o visitante.
- E era um homem muito inteligente. Mas acima de todos admirava o Sá Carneiro. Conheci-o também. E à Snu. Que mulher com categoria! Chegou a pedir-me para escrever um livro com as minhas memórias. Está aqui a minha Maria que não me deixa mentir – continua o Abílio, olhando para a mulher.
Esta, com um sorriso de tom levemente amarelado afivelado no rosto já com algumas rugas, confirmou com um tímido movimento da cabeça.
- Mas o Sr. Fonseca escreve? – pergunta o admirado Teles da Silva.
- Tenho umas coisas escritas. Ando agora a ver se publico. Mas, naquele tempo, já nem sei bem como, chegaram às mãos da Dr.ª Snu Abecassis uns sarrabiscos meus e ela ficou muito bem impressionada – e voltando-se para a mulher – Maria! Daqui a quanto tempo vamos jantar?
- Daqui a uns cinco minutos. A empregada ficou a tratar das coisas – responde a mulher.
- Então o Sr. Eng. vive numa vivenda na Foz, não é verdade? – pergunta o homem da casa.
- Oh Sr. Fonseca! Isso seria muito interessante, mas só tenho um apartamento em Matosinhos – responde, um tanto intimidado, o convidado, bem mais novo que o outro.
- Mas lá irá chegar! – profetiza o visitado – eu já vivi numa, na Boavista, mas depois de os meus filhos casarem preferimos um apartamento mais pequeno e mais acolhedor.
A Maria do Céu levanta-se e vai à cozinha.
Pouco depois estavam todos sentados à mesa.

O convidado acaba de sair, e Maria do Céu diz para o marido:
- Oh homem! Porque és tu assim? Se o Eng. descobre que nunca conheceste nem o Freitas nem o Amaro da Costa nem a Snu, que ainda escreves pior do que eu e não vais publicar livro nenhum, que nunca vivemos na Boavista nem em nenhuma vivenda, ainda vai o negócio por água abaixo.
- Ora! Eu não sou mentiroso. Exagerei um bocadito mas convém dar alguns ares de importância. São técnicas de marketing, Maria. Técnicas de marketing. Além disso tu não me deixas mentir – e, dito isto, o Abílio afasta-se.
- Para viver trinta e tal anos com um mentiroso compulsivo é mesmo preciso ter uma paciência de Job – cogitou a mulher.

23 Comments:

Blogger wind said...

Gargalhadas;) Está muito bom:) À medida que ia lendo, desconfiei que era só parlapiet e confirmou-se. Mostraste muito bem o que certa gente é capaz para conseguir o que quer. beijos

6:29 da tarde  
Blogger Maria Carvalho said...

Ah ah ah Adorei! António...Aqui está, mais uma vez, um diálogo mais que real, de com certeza, mais de 80% dos portugueses!! A fachada, a mentira, a snobeira e o não terem onde cair mortos!! Porra!! Carago! Como vocês dizem aí no Norte!! Só mesmo com um 'pano encharcado nas ventas', como dizemos aqui no sul, bem pespegado nesse Abílio... Beijinhos. Adorei!!

6:31 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Parabéns!
Diálogo real, bem-humorado e sempre actual!
Mas o Sr. Abílio, foi buscar, os mortos os vivos! Grande família!
Fiquei na dúvida que Freitas tenha uma casa bem decorada!!!
A submissão da esposa, o Abílio lembrar “o novo-rico”.
Adorei!

Bjs,

GR

10:36 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Muito bem conseguido. Parabéns, António por mais este diálogo! Só tu para me fazeres rir até às lágrimas. é um mimo este estilo de pessoas, e é o que provavelmente abunda....
Beijinhos

11:07 da tarde  
Blogger António said...

Para "GR":
Obrigado por mais uma visita.
Neste post quis pôr em evidência um tipo de pessoas que, mesmo não o fazendo de má fé (pois não tem a noção exacta de que mentem muito), são extremamente perigosas: os mentirosos compulsivos.
Exagerei um pouco porque se quisesse ser mais realista tinha de fazer um texto muito maior e com as mentiras mais intervaladas.
Conheço várias pessoas desse género.
Uma delas diz, constantemente, referindo-se à mulher:
- Está aqui a minha Maria que não me deixa mentir!
Aproveitei a frase.

Beijinhos

12:26 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Se o convidado da figurinha conhece as técnicas de marketing, nunca mais se fará o negócio, António ;-)

Bom domingo.
Beijo,

Cris

1:27 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Bom dia António,

A mentira compulsiva é uma das manifestação de uma psico-patologia. A insegurança transmitida pela falta de auto-estima leva a comportamentos desta e de outras caracteristicas. No fundo são seres muito infelizes e com inumeras fragilidades, embora tentem disfarçar desta forma bacoca.

Beijinhos e bom fim de semana
Ana Joana

11:35 da manhã  
Blogger António said...

Para "ana joana":
Eu tinha a noção de que a "mentira compulsiva" seria uma doença.
E penso que não tem cura!
Obrigado pela visita.

Beijinhos

1:05 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

É muito comum acontecer que um conhecimento casual seja visto como um troféu, desde que o troféu seja um colunável seja de que área for.
A brincar conto-te que um dia na rua encontrei uma célebre figura pública que confundindo-me com alguém me cumprimentou com entusiasmo, incluindo casto beijo na cara, seguindo depois o seu caminho. Diga-se de passagem que a "figura pública" nem é das piores (que sorte), e perante o ar embasbacado da pessoa que ia comigo, disse-lhe: ah..estás espantado? Somos muito amigos..
Claro que desfiz o engano, não fosse ele lembrar-se disso mais tarde, para meter "cunhas" por ex.

Beijos por mais um texto à altura do meu primo preferido:)

fernanda

2:24 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A mentira compulsiva não é uma doença, é sim uma consequencia/manifestação de uma psicopatologia. Com terapias adequadas conseguem-se anular as consequencias. Ou seja, a mentira compulsiva funcionará como a febre: debeladas as causas anulam-se os sintomas.

A diferença é que a febre é reconhecidamente uma manifestação de que algo está mal, ao passo que o mentiroso compulsivo é visto como um personagem gabarolas, geralmente um palhacito sem credibilidade alguma e sem que a compreensão pelo problema que o provoca
lhe seja associado. Esta desvalorização do individuo é dramática para o agravamento da patologia.

Beijinhos
Ana Joana

3:20 da tarde  
Blogger Peter said...

O texto fez-me lembrar o facto de eu ter sido indicado por uma pessoa aqui nos blogs, como sendo um "ilustre Prof Universitário de Física", mas que pretendia manter o anonimato.
Claro que não tem ponta por onde se lhe pegue, mas dá "categoria" fingir que somos íntimos de indivíduos com uma dada posição social ou, neste caso, cultural.

4:46 da tarde  
Blogger António said...

Para "Ana Joana":
Obrigadinho pelos teus esclarecimentos.
Manda sempre!

Beijinhos

5:13 da tarde  
Blogger Su said...

isso ultrapassa a mentira..é tara:))) há gente assim, mas logo os reconhecemos:)

jocas maradas

8:42 da tarde  
Blogger Caiê said...

Ai António!:)
Vivíssimo retrato! E já terás tu feito a conta a ver quantos blogs por aí há de mentirosos compulsivos, pseudo-poetas, por exemplo? Mais ou menos equivalente ao número daqueles que não aceitam a mínima crítica... Eh eh eh!
Ri-me a valer com este diálogo! ;)

11:34 da tarde  
Blogger Papoila said...

Ah!Ah! Ah! Gostei imenso António. Este diálogo é típico dos Fonsecas atacados de "novo-riquismo"...Lá pelas minhas "bandas" eles são aos montes e o mais engraçado é que de Mercesdes parado à porta do Centro de Saúde, são isentos de taxa moderadora por não ultrapassarem o escalão mínimo do IRS... Muito boa esta caracterização. Beijo

6:13 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Técnicas de marketing...lolol...pois sim....e abençoada a paciência da "Maria....que não o deixa mentir"...não é????

ès loco, mesmo mas enquanto escreveres assim...podes continuar a Sê-lo. Não me importo
Jinho, BShell

7:42 da tarde  
Blogger pinky said...

realmente! há com cada mentiroso compulsivo! eu no principio da história comecei logo a duvidar! sabias q o amaro da costa era alentejano? ainda era familia afastada, no alentejo é tudo parentiiii!

9:16 da tarde  
Blogger SFeneacoach said...

Ehehe! A coitada da Maria que não o deixa mentir, a culpa dele ser assim deve ser dela que o deixa fantasiar e ainda anui!!!!!!! ;)

11:52 da manhã  
Blogger Leonor said...

ola antonio.
dizem que a mentira temperna curta e que se apanha mais depressa um mentiroso do que um coxo.
fazes muito bem os dialogos. têm ritmo.

abraço da leonoreta

10:16 da tarde  
Blogger Menina Marota said...

... pois é... presunção e água benta...

... acredita que existem para aí muitos Abílios... ai, existem existem... e, olha que eu conheço alguns!! eheh


... mas sabes, a verdade é como o azeite... um dia, vem ao de cima.

Adorei o texto.

Abraço sorridente ;)

11:35 da manhã  
Blogger lena said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

8:50 da tarde  
Blogger lena said...

atrasada a comentar mas não podia deixar de ler mais um diálogo,
tenho andado um pouco afastadinha,
li e como sempre me deixei envolver, quase que conseguia ver a sala cheia de bugigangas, numa mistura "sem gosto" e um enormes sofás de couro, que ficam sempre bem e impressionam

tive que me rir, claro e bem, esta de perguntar à mulher, para confirmar, é demais., é mesmo de quem se encontra inseguro,
o Sr. Engenheiro devia estar fartinho de tanto diálogo, melhor dizendo mono diálogo

aquilo já não é mentir é doença, infelizmente ainda de vê por aí, o fazer-se passar por ou o armar-se em...

o retrato de alguma sociedade que temos,
sempre muito verdadeiros os teus "diálogos" que adoro ler

beijinhos muitos para ti meu amigo António

lena

9:14 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

GARGALHADASSSSSSSSSSSSSSSS
Desses, há muitosssssssss!!
Que perspicácia,tão irónica, António!!!!! Muito giroooooo, para o País dos Drs e Engs...... :-))))))
Beijo

10:33 da tarde  

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