Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

A minha foto
Nome:
Localização: Maia, Porto, Portugal

sábado, maio 13, 2006

Diálogos de gente (XII) (A alcoólica)

José Alberto Brito é escriturário na Conservatória do Registo Civil.
Com trinta e cinco anos, casado com Luciana Carvalho, um pouco mais nova, nenhum filho nasceu ainda da relação. Esta não tem profissão ou, como se costuma dizer, é doméstica.
- Boa tarde, Luciana! - disse o homem ao entrar no pequeno apartamento de três assoalhadas onde vive.
Não obteve resposta.
- Luciana! Cheguei!
- A Luciana está a dormir há várias horas – ouviu uma voz bem conhecida dizer.
- Oh mãe! Está cá? Não me diga que ela...
- Pois é, meu filho! Mais uma carraspana de caixão à cova – disse, num tom de desaprovação, a quasi sexagenária.
- Esta mulher é terrível! Dá cabo de mim! E onde foi arranjar o vinho, desta vez? – disse, desalentado, o bom Zé, antes de suspirar fundo.
- Deve ter ido lá fora comprar um garrafão de maduro tinto que estava na cozinha com muito menos de metade. Agora não tem nada porque eu o esvaziei – esclareceu a mãe.
E continuou:
- Ainda bem que eu tenho a chave e venho cá. Estive a ver a tua roupa e só tens uma camisa lavada. Pus alguma a lavar e depois levo-a para minha casa para tratar dela.
- Se não fosse a mãe esta casa era uma desgraça. E mesmo assim é o que se vê! – desabafou o José, olhando para vários pontos da cozinha e da sala onde o desarrumo era imenso – E assim agradeceu, implicitamente, à sua mãe, Isaura.
- Eu não percebo porque não te divorcias, Zé! – disse a senhora – Já falamos nisso muitas vezes. Eu sei que tens pena dela e, no fundo, continuas a gostar da Luciana. Tens um bom coração. Bom demais. Mas nem um filho tendes. E acho muito bem, pois com a mãe alcoólica poderia ser uma criança com problemas.
E continuou a falar de pé, com o filho agora sentado num sofá já coçado, os cotovelos apoiados nas coxas e as mãos segurando a cabeça inclinada:
- Já esteve internada a fazer recuperação por duas vezes e ao fim de pouco tempo lá voltou o vício. Já a mandaste para casa da mãe mas ao fim de seis ou sete dias foste lá buscá-la roído pelas saudades. As pessoas já a conhecem como a “bêbeda” e a ti como o “nabo”. Qual o teu futuro? Eu sei que já falamos nisto muitas vezes mas o problema continua. E vai continuar até se tomar uma decisão radical que tem de ser tua. Tens de ter coragem para a deixar. Não conheces outra mulher com qualidades? Aquela tua colega da repartição que é solteira, por exemplo.
- Oh mãe! Já lhe disse muitas vezes que tem toda a razão, mas não me consigo decidir. – disse o Zé – Não sei porquê, mas não a consigo abandonar. E quando está lúcida até é muito boa pessoa.
- O pior é que passa metade dos dias enfiada na cama com um grande pifo ou a andar pela casa como um fantasma quando está na ressaca. – ripostou a velhota – Tu és um mole! Se um dia morro, e não vou ficar cá para semente, não sei o que vai ser de ti. E tenho cá um desgosto por não ter um neto teu. E o teu pai também! Ele nem vem cá para não se incomodar. Quasi que nem fala contigo sobre o assunto. Deus me perdoe, mas se a desgraçada morresse eu ficava toda satisfeita!
- Oh mãe! Não diga isso! Acho que temos de arranjar uma clínica onde ela possa estar mais tempo. A solução é essa, na minha opinião – opinou o Zé Alberto.
- Eu já não acredito nisso! Já esteve em recuperação duas vezes e foi o que se viu – disse a Isaura.
- É uma merda! É uma merda! – libertou-se o coração do José.
Entretanto ouviu-se um barulho vindo do quarto.
- Olha! Parece que se está a levantar! – disse a mãe – Vai lá tu ampará-la antes que dê um trambolhão. Eu vou dar uma arrumadela à casa, porque hoje e amanhã a tua mulher não vai estar em condições. E depois vamos ver!
O José Alberto dirigiu-se ao quarto onde a Luciana estava sentada na cama, pés nus no chão, cabelos desgrenhados, rosto avermelhado, olhos semicerrados.
- Oh mulher! Então andaste outra vez a beber? – censurou o marido.
- Eu? A...be...ber? Só...um...bo...cado. Pou...co – lá foi falando a alcoólica.
- Oh Luciana! Não foi pouco, não senhora! Felizmente a minha mãe veio cá, está a fazer as coisas que tu devias ter feito, e viu um garrafão quasi vazio – corrigiu o Zé.
- A bru...xa...está...cá? A...fa...zer...o quê? – desaforou a Luciana.
- Cala-te mulher! Cala-te!
- Te...nho...se...de! Dá...me...vinho! – disse a mulher.
- Agora vais é beber água e dormir mais, pois não estás ainda em condições de te levantar. Espera aí um bocadinho que já venho – disse o marido.
Enquanto isso, a mulher deixou-se cair para trás, na cama.

28 Comments:

Blogger António said...

Este diálogo foi inspirado em situações reais.
Faço este aviso pois, para alguns leitores, pode parecer pouco verosímil.

Saudações

3:21 da tarde  
Blogger Papoila said...

Não António é bastante verosímel infelizmente. A situação é menos frequente no sexo feminino mas também há mulheres alcoólicas, que não são violentas como os homens, são até frágeis muitas vezes, mas provocam este tipo de desgaste emocional. Beijo

4:51 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Conheço alguns casos, António.
Não vou dizer-te nada que não saibas.
Há situações que nos deixam ausentes de palavras.
Só quem convive com situações destas é que pode dizer o que sente!
Fácil, para quem está de fora, emitir opiniões, aconselhar.
Só que há sentimentos que não se explicam, não é?
Vês quando te falava em amor, há dias, num outro teu diálogo?
Não amasse o José a mulher e já tinha batido com a porta.

Gostei muito de te ler.
Gostei mesmo muito, muito!
Eu gosto sempre!!

Até mais logo, Amigão.
Beijo,

Cris ***

5:19 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Infelizmente o alcoolismo feminino existe, segundo os dados dos Centros de Saúde, em cada dez alcoólicos, dois são mulheres, mas o número tende a crescer. Com uma particularidade, os homens bebem em grupo, as mulheres no isolamento, escondem-se.
Terrível este drama!
A sensibilidade cheia de sofrimento do marido, a angustia da mãe do Zé Augusto, a incompreensão do pai. Este é um problema, tipo bola de neve, arrasta muita gente.
Não é com criticas e esconder o problema que se curam estes doentes. É necessário, muita compreensão, bons técnicos de saúde, mas também muito carinho cheio de confiança.

Excelente narrativa!
Nos teus textos há sempre muita sensibilidade.
Hoje, comoveu-me a tua história.

Um beijo,

GR

5:39 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ai António, escreves tão bem, que fiquei triste depois de ler o teu texto de hoje. Triste porque escreves com tanta realidade, verdade e emoção que até parece que estou a ver a situação. E ela angustia-me sempre, pois é uma realidade, infelizmente.
Beijinhos querido amigo

6:26 da tarde  
Blogger lena said...

António, outro dos teus Diálogos e infelizmente muito verdadeiro

alcoolismo feminino está a avançar em passos largos,

descreves tão bem a situação. se consegui visualizar tudo o que se passa em redor de uma família, assim desgastada pela "dor" de uma "doença" que só uma grande força de vontade se cura

é uma realidade muito triste e que me dói

beijinhos para ti meu querido amigo

lena

9:14 da tarde  
Blogger wind said...

Situação bem real e terrível para quem é alcoólico e para quem vive com essa pessoa. No diálogo focaste muito bem o que se passa, por isso nada tenho a acrescentar senão fazia um testamento sobre o alcoolismo e famílias:) beijos

10:53 da tarde  
Blogger Heloisa B.P said...

Este, meu AMIGO*,e' um PROBLEMA GRAVE e com muitas implicacoes!
Abordou este tema, de modo sobrio e discreto! Os dialogos, sao, como ja' nos habituou_"REAIS"_! mas, neste caso particular, onde o humor nao tem espaco e, o ANTONIO, evitou-O com mao de mestre! Neste caso, esta' uma dura realidade exposta, de um modo que estamos 9estou0 a ver o ZE' sentado no sofa' e... a MAE do ZE', atarefada e,agastada, desiludida com a VIDA E O FUTURO DO FILHO!
Alcoolismo, no feminino e no masculino, meu AMIGO, nao se esgota aqui e...quanto a SOLUCOES para o ZE'(MILHOES DE ZES E MARIAS), nao se avistam no horizonte!_MUITA COISA PRECISA SER FEITA E MUITA ATITUDE MUDADA!
E, infelizmente, ve-se todos os dias os jovens, cada vez mais jovens, ingerirem mais alcool a proposito de comemorar ou nao comemorar coisissima nenhuma1 a proposito da alegria ou da tristeza! porque e' moda! e... porque o amigo o colega tambem bebe!
um destes dias uma (das muitas do gener) noticia de jornal e tele-jornal, aqui, diz-nos que uma menina de onze anos ira' ser mae e que ficou gravida numa fessta a noite com amigos... onde fumam e bebem_ELA BEBE E FUMA DESDE OS NOVE ANOS!!!!!!!!
ETc... isto vem a "talhe de foice", porque ME PREOCUPO MUITO com este tipo de situacoes; ate', porque, tenho filhos jovens e netos em crescimento!
Meu CARISSIMO AMIGO*, ESTE SEU *POST*, nao me faz sair, como e' habito rindo de prazer, faz-me sair REFLECTINDO! dou-Lhe os PARABENS por trazer AQUI AQUI UM ASSUNTO SERIO e, te-LO tratado de modo tao sobrio, tao natural_TAO HUMANO_!!!
RESTO DE BOM FIM DE SEMANA!
AGRADECO SUA VISITA A MEU BLOG!
ACEITE MEU AMIGO ABRACO!
Heloisa.
**********

10:56 da tarde  
Blogger Leonor said...

antonio... li o teu aviso logo no inicio dos comentarios. para mim é verossimel demais. conheço uma situação igualzinha - sem a sogra.

mas olha... tenho pena da alcoolica. ela sofre mais do que ele.
bem escrito como sempre.

abraço da leonoreta

10:57 da tarde  
Blogger Maria Carvalho said...

Excelente diálogo. A situação já a vivi do inverso. Sei bem do que falas. Homem ou mulher é indiferente, qualquer vício dá tão cabo dos outros como de si próprio. Beijos.

8:46 da manhã  
Blogger MT said...

Gostei muito, infelizmente o teu texto é bastante real.
Mas agora pergunto que grau de desespero atira alguém para o nivel da sobrevivência em vez de viver a vida plenamente? Estas pessoas não vivem, arrastam-se pela vida. Ou acreditas que pode ser apenas fraqueza de espirito?
Eu tenho cá as minhas dúvidas.

Beijinhos

12:20 da tarde  
Blogger Alma de Poeta said...

Bonito retrato escrito, que de uma maneira bastante clara retrata uma realidade que infelizmente existe.
Revela sentimentos bastante reais.
Gostei muito. Parabéns pela escrita que é de facto muito envolvente.

12:58 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bom dia António!
Desta vez tocas em duas problemáticas bastante reais: a dependencia (ela) e a co-dependencia (ele). Ambas se caracterizam por conjuntos de comportamentos que levam a um enfraquecimento da auto-estima e subsequente empobrecimento da qualidade de vida em todas as suas vertentes.

São problemáticas muito complexas e muito sofridas.A compulsividade para o consumo ultrapassa a lógica do razoável. Por outro lado, o co-dependente vai fazendo depender a sua vida da "imprescindibididade" de cuidar/tratar do dependente proximo, anulando os seus desejos e necessidades, passando a viver em função do dependente. Por isso, compreendê-la vai geralmente para além do que é visivel ou aceitável pela generalidade.

Mudar comportamentos compulsivos é um processo que exige muito esforço e sofrimento, os quais nem todos estão preparados para enfrentar.

Neste caso a droga referida é o alcool, mas o processo é identico para as restantes drogas.Tanto se pode dizer dele.

Parabéns por trazeres também este tema.

Beijinhos António
Ana Joana

1:10 da tarde  
Blogger Caiê said...

Pessoalmente, creio ser o alcoolismo o problema tão feminino como masculino. A solução passa por muita coisa mas, antes de tudo, passa por uma grande dose de força de vontade!

5:18 da tarde  
Blogger António said...

Para "GR":
Obrigado por mais um comentário com bastante informação útil.
Beijinhos

11:23 da tarde  
Blogger MT said...

António,

Obrigada pelas tuas palavras amigas.

11:26 da manhã  
Blogger SFeneacoach said...

Esta história merecia continuação... gostava de saber se a Luciana se tratou e se se entendeu com o marido! Obrigada pelas palavras lá no meu cantinho: ando a pensar em fazer qualquer coisa maior...mas ainda ando só a pensar, eheh! Beijinhos! :)

11:47 da manhã  
Blogger António said...

Para "vitor cintra":
Não consegui ir ao teu blog (se é que tens algum), por isso deixo aqui o meu agradecimento pelo comentário.
Volta sempre.

Abraço

2:40 da tarde  
Blogger António said...

Para "ana joana":
Gostei do teu comentário.
Manda sempre.
Beijinhos

2:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

vinho carrascão eheheh

6:34 da tarde  
Blogger Ovelha Negra said...

oi! ena bem, o que eu tenho perdido...
num batas-me que eu sou piquenina...
;) vim dar umas beijocas pelas vezes todas que aqui não tenho vindo!

8:34 da tarde  
Blogger pinky said...

problema complicado, esse! belos diálogos, espero q a história tenha continuação... jokas

10:16 da tarde  
Blogger amigona avó e a neta princesa said...

Como já sabes gosto muito de "te ler"...

e sabia que mesmo que não dissesses nada esta história tem laivos de realidade... mas não continua? Não lhe dás um final? Talvez feliz...

10:29 da manhã  
Blogger António Gomes said...

À sempre uma garrafa para beber e uma mulher para amar, quando nada se tem a perder.

12:45 da tarde  
Blogger LUIS MILHANO (Lumife) said...

Uma visita para pôr a leitura em ordem.

abraço

7:30 da tarde  
Blogger mitro said...

Aguardo a continuação...

(Mas gosto! Já pensaste em escrever teatro?)

7:41 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bom dia António!

Passei para ver se havia novidades, mas ...

Voltarei.

Um dia feliz para ti.

Beijinhos
Ana Joana

10:22 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

CREDO! Com um marido assim e uma sogra SINISTRA que lhe invade a privacidade dessa forma, até eu, que sou abstémia convicta, beberia até cair para o outro lado! O lado daqueles que RESPEITAM OS OUTROS e não os infantilizam, sobreprotegendo-os hipocritamente. CASTRANDO-OS. Que tragédia esse escrito! PELA SOGRA, por esse marido, que companheiro não pode ser, pelo teu ponto de vista moralizante, distorcido, labiríntico. :(

11:48 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home