Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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segunda-feira, janeiro 22, 2007

Traz a faca para matar o ladrão!

Os meus pais, Fernando e Julieta, conheceram-se nos finais dos anos 30 do século passado. Praticamente em cima do início da II Grande Guerra. Durante o conflito eles, como muitos mais, retraíram-se em relação à união pelo casamento pois, apesar de Portugal não estar directamente envolvido nas batalhas sofria, como todo o mundo, nomeadamente a praga do racionamento de produtos de primeira necessidade.
Não é pois de admirar que, só em 1946, tenham dado o nó matrimonial numa modestíssima cerimónia pois os tempos ainda eram de vacas magras.
Não posso deixar de fazer aqui uma referência ao facto de, tanto quanto sei, ter sido nesses anos do pós-guerra que se bateram todos os recordes de natalidade a nível mundial.
Eu sou um produto dessa fúria reprodutora à qual se seguiu uma descida contínua e imparável do número de nascimentos ao longo dos anos que, aliás, ainda prossegue.
Ora são os filhos do após guerra, como eu, que estão agora a passar à reforma e a depauperar as finanças públicas de inúmeros países.
Pela parte que me toca peço desculpa aos mais novos, embora não tenha responsabilidades no assunto, como devem imaginar.
Mas voltemos ao tema inicial.
Os meus progenitores foram viver para a Rua de Oliveira Monteiro, 1015, ao Carvalhido. No Porto, claro!
Era uma pequena casa alugada, térrea, com uma só janela virada para a frente e lá vivi até aos sete anos. Valia ter um quintal de dimensões razoáveis onde eu e a mana Fernanda brincávamos a maior parte do tempo (se as condições climatéricas o permitissem).
Talvez porque a habitação tinha poucas condições, talvez porque era benquisto por toda a família, talvez porque a minha mãe ficava mais desafogada para tratar da bebé mais pequerrucha, eu ía passar algumas temporadas, quer a Vila Praia de Âncora quer a Valença do Minho, para casa de tias. E bem gostava de o fazer...
Lembro-me de só uma noite ter vertido umas lágrimitas de saudades pelos meus pais quando já estava só e deitado na cama para adormecer. De resto, sempre gostei de andar por aqui e por ali. Diziam que era ave de arribação. Sempre fui, de facto.
Tudo terminou com a entrada na primária.
Em Setembro de 1956, tinha sete anos e acabada de fazer a 1ª classe, mudámos para a moradia das Antas. Também alugada, diga-se, mas com dois pisos, um pequeno jardim nas traseiras e, sobretudo, muito maior e mais moderna.
A velha casinha já foi há muito demolida mas o espaço por ela outrora ocupado ainda está vago. Situa-se num gaveto da Oliveira Monteiro com a Rua da Constituição. A casa adjacente, habitada nesses já remotos tempos por uma senhora de idade (a D. Maria Caldas) ainda lá está com as suas duas janelas.

O que vou contar a seguir não foi por mim presenciado. Penso que ainda não era nascido.
Tinha a casa de Oliveira Monteiro uma só porta alta e estreita, com duas portadas que subiam até à esquadria de granito e dois postigos de vidro martelado e com grades em ferro na parte exterior, um em cada uma das duas metades da porta.
Rezam as crónicas familiares que, uma noite, já bem depois das doze badaladas terem soado no sino da Igreja, se ouviu um estranho abanar da porta da rua.
O meu pai, decidido, foi averiguar o que se passava enquanto a mulher ficava na cama.
E viu claramente uma sombra, provavelmente as mãos de um homem, a abanar a porta.
E falou baixinho para a que haveria de ser minha mãe:
- Oh Leta! Traz cá a faca para matar o ladrão!
A Julieta não gostou muito da ideia mas, perante a insistência do marido, lá foi buscar o maior facalhão que tinha na cozinha.
Agora bem armado, o Fernando ousou abrir a porta num rompante e...que viu ele?
Um gato pendurado na grade de um dos postigos e que imediatamente se pôs em fuga.
Mas a história correu célere pela família e, não poucas vezes ao longo dos anos, eu ouvi-a ser contada.
E outras tantas escutei os meus parentes a perguntarem ao pai:
- Oh Fernando! Eu queria era ver se você matava mesmo o homem se fosse um ladrão!
E o meu pai fazia um sorriso de tons levemente amarelados e dizia:
- Se tivesse mesmo de ser!...

26 Comments:

Blogger Maria Carvalho said...

Gosto imenso da maneira como contas as tuas histórias! E estou só a lê-las...como te disse, imagino-te a contá-las pessoalmente no teu tom de voz. Sempre interessantes e é com enorme prazer que as leio. Agradeço o teres gostado, também, do meu poema de hoje. Tu és sempre um querido, António. Beijinhos daqui.

3:27 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Mais outra história engraçada, que li com imenso prazer,recheada de alguns pormenores muito interesantes, onde quem iá sendo morto era o ladrão do gato!
Um beijinho!

3:41 da tarde  
Blogger Fatyly said...

Tu és um bom narrador de histórias, que delícia!
Parabéns!
Beijos

6:25 da tarde  
Blogger Caiê said...

Ena, fenomenal! ...
O teu pai saíu-me um tipo de coragem. Mas olha que a mãe também.
Então, tu és fruto do baby boom?
Já me cheirava... Ah ah ah!

7:39 da tarde  
Blogger Diolindinha said...

Vizinho António, até cheguei a pensar que era um extraterrestre que estava a querer entrar! Coitado do bichano, do que ele escapou!

9:10 da tarde  
Blogger Flor de Tília said...

Uma história diferente mas nem por isso menos interessante. Tens um jeitinho especial para a concepção deste tipo de texto. Vou dividir o meu comentário em duas partes.E hoje vou agarrar-me à História.Tu deixaste-lhe o rasto aqui pelo meio. Primeira: os anos que se situam no período imediatamente antes da guerra. Um período posterior à grande crise mundial de 1929.A falência de milhares e milhares de empresas em todo o mundo e cerca de trinta milhões de desempregados dos quais se destacaram ,na Europa ,a Alemanha e a Inglaterra. A Guerra veio agudizar ainda mais a frágil situação económica da Europa. Os teus pais, António, não hesitaram em ir adiando o casamento.E não me venham dizer que quem pensa não casa! Depois da guerra, maior confiança no futuro, aumento da natalidade e eis que chegamos.Nós, mesmos! Tu foste um produto do fim da guerra e eu outro.Dois produtos urbanos. A natalidade aumentou consideravelmente nesse tempo em que finalmente puderam " make love not war".
Depois de me referir ao contexto em que te situaste eis-me no cerne da acção:a meia-noite, hora em que tudo acontece, as doze badaladas e o gato a bater à porta. Parecia mesmo um homem! E o teu pai não hesita em defender a família. Não ganhou para o susto mas tudo correu bem.
E por pouco não matavas mais um macho, António!
Acho que desta vez exagerei no comentário.Fiz quase um post mas tu tens cá um jeitinho para as histórias curtas.
Continua amigo!
Beijinhos.

10:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Os teus filhos devem adorar estas histórias, é sempre bom saber a nossa história, mesmo quando esta aconteceu antes de nascermos.

Beijinhos

11:50 da tarde  
Blogger Menina Marota said...

Esta tua forma maravilhosa de contar estes episódios, colocam um grande sorriso no meu rosto.

Como me delicio quando aqui venho!

Grata pela partilha...

Um abraço e boa semana ;)

2:48 da manhã  
Blogger Cusco said...

Boa,boa história para numa fria noite de Inverno, junto a uma boa lareira empoleirando três ou quatro netos á volta lhes contar também.. e é claro que nessa história seria um homem que estaria á porta e amedrontado teria fugido e deixado uma enorme bolsa com dinheiro com o qual se fez esta casa!!!
Peço perdão pela divagação mas esta história fez-me lembrar esta versão que o meu avô me contava!

Até breve
SE DEUS QUISER

11:06 da manhã  
Blogger Leonor said...

ola antonio
perdi o primeiro comentario
vou fazer o segundo

mais do que uma história fizeste um documento na medida em que transpões parte da tua vida e dos teus parentes para um campo histórico mais abrangente.

para resumir, e nao maçar-te com considerações que poderão soar-te supérfluas, o teu blog continua a ser um dos melhores para serem visitados.

abraço da leonoreta

12:24 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ainda bem que desta vez não morreu ninguém! Nem o gato! Se tinham dado uma facada no gato, não voltava cá! Eu adoro gatos!!!!

2:42 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

António,

A minha novela ainda não acabou, voltou para o passado ao dia em que se conheceram...parece-me que não estás a gostar muito. É uma primeira experiência e a forma ainda não está muito bem definida.
Mas obrigada pelo comentário

Beijinhos

6:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ai que mauzinho! Os gatos não são coelhos! Por vias das dúvidas, também não como coelho! São tão bonitos, tão fofinhos!
Poesiamgd.blogspot.com

9:21 da tarde  
Blogger wind said...

História deliciosamente narrada e ri-me com o teu pai:)
Já sei de onde vem a tua vontade de matar nas tuas últimas histórias. gargalhadas:))))
beijos

10:33 da tarde  
Blogger amigona avó e a neta princesa said...

Eh, eh, António!!! Sabe-se lá o que podia ter acontecido!!!!!!Até que ponto a história podia ter mudado?!!!! Até a tua própria história!!!!Beijo...

9:19 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Eheheheheh! O seu pai não andaria a ver demasiados filmes no cinema? ou então era mesmo um valente! Acredito na segunda! beijinhos

11:05 da manhã  
Blogger Peter said...

Gosto imenso do modo como escreves as tuas histórias, valorizando o pormenor e privilegiando o diálogo.

Duas notas:
- O "boom" de nascimentos, pelas razões que apontas, foi um fenómeno mundial. É da história.
- Os reformados, não estão a "roubar", os mais novos, que reformados serão. Descontaram dos seus míseros vencimentos durante toda a sua vida.

É o ataque aos reformados, do qual acho o mais miserável o que se avizinha: o ataque às "pensões de sobrevivência" das viúvas. Não entro em pormenores, é só ler o jornal.

"Os vencimentos e regalias dos gestores de bancos e de EMPRESAS COM PARTICIPAÇAO DO ESTADO (pagos por TODOS NÓS) revelam diferenças chocantes. O Tribunal de Contas considera o actual sistema arbitrário e destituído de critério." (Jornal "SOL" de 20/JAN/07)

2:35 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Olá António:
Como filha desta geração do post guerra gostei da história das memórias.
Tens um modo muito coloquial, e descritivo de as narrar que nos leva a lê-las com a intensidade com que as escreves.
Gostei.
Beijo

8:11 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

ahahahahahahahahahah
António, tu e as tuas histórias....esta está demais! Ou então sou eu. Imaginei-me quando era criança muito pequena e a aldeia sem luz electrica, nas noites escuras como breu e as coisas acontecerem...
Beijinhos, querido amigo

9:34 da tarde  
Blogger Caiê said...

Voltei! A Pug achou muita graça, claro, embora o ladrão cá de casa seja o outro gato...
Nunca me agradeças por comentários que faço. Faço-os por gostar e por saber que também gostas de ouvir críticas ao "trabalhinho". ;)

12:39 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Olá,
Que posso eu dizer se os meus olhos não falam!
Transmitem emoções, a essa beleza inconfundível
Que as palavras me transmitem
Aqui estou eu para te dar o meu gesto de carinho
Soberbo...

Conceição Bernardino

11:34 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

antónio,
como é bom termos histórias para recordar! a minha família também tem algumas e muitas vezes recordamos em amena cavaqueira!
beijinhos.

2:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ao ver o seu comentário no blog da Teresa, e ao ler a frase “gato ladrão”, movida pela curiosidade vim aqui ao seu blog dar uma espreitadela.
A sua história é deveras engraçada, mas fico mais sossegada por saber que o senhor seu pai não matou o ladrão, fosse ele homem ou... gato!!!

11:56 da manhã  
Blogger lena said...

António, querido amigo

mais uma "história" é sempre um prazer ler algo teu,
sempre muito bem narrada, consegues prender-me e imaginar todos os momentos

saudades muitas de ouvir o meu pai contar, deliciava-me, são histórias que vão passando de pais para filho e que me delicia, tal como esta

obrigada meu amigo, por todos estes excelentes momentos

abraço-te com ternura

lena

5:16 da tarde  
Blogger António said...

Para "sonamaia":
Olá, nina!
Obrigado pelo comentário.
E eu sempre fui uma ave de arribação (ou seja, ave migratória que tanto vive aqui como ali).
A história da minha vida não me deixa mentir...ah ah ah.

Beijinhos

6:37 da tarde  
Blogger Heloisa said...

"Oh Leta! Traz cá a faca para matar o ladrão!"
**********************AQUI*, FOI GARGALHADA SONORA!
LI TODO O TEXTO E RELI, SEMPRE COM UM CRESCENTE SORRISO NOS LABIOS!_E' que eu nunca leio so' uma vez! antes de deixar mensagem, as vezes ja' li, tres e quatro vezes! hoje nao li so' DUAS mas nessa parte em destaque foi GARGALHADA!
_ANTO' NIO! MEU AMIGO ANTONIO, eu acho que nasceu para sr *CONTADOR_DE HISTORIAS_! que e' como quem diz: *CONTADOR/ESCRITOR*!!!!
_Tambem ja' li a OUTRA mais acima a que como eu tem medo das trovoadas! e bem me lembro de ALGUMAS NO MONTE! OUTRAS EM AFRICA E ALGUMAS EM MAR ALTO!
_TENHO HOJE, AINDA, PAVOR DE TROVOADAS!_Minhas netas nao tem e eu tenho e faco uma ginastica imensa para nao as asustar-NEM SEMPRE CONSIGO_!
_ImAGINE o que nao SORRI tambem ao LER a oUTRA HISTORIA1
Mas esta do "O' LETA, TRAZ CA' A FACA PARA MATAR O LADRAO!*E' demais!
E, eu estou mesmo a ver o SEU PAI DE FACA EM RISTE AVANCANDO PARA A PORTA E SUA MAE ASSUSTADA! algo similar se passou tambem naminha tenra infanci mas era MEU AVO de espingarda em punho, tambem avancando para potencial inimigo e, eu, e minha AVOZINHA encolhidas ao canto da chamine' com medo do ladrao ou assassino que aquilo eram bandidos a solta que vinham la' das "Espanhas"!!!
AH, MEU DEUS!
AS HISTORIAS!!! mas oANTONIO e' UM *CONTADOR NATO*_ESTA'-LHE NOS "GENES"!!!

Fica um abraco Meu AMIGO!
UM ABRACO!
Heloisa
********

12:18 da manhã  

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