Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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sábado, dezembro 23, 2006

Histórias curtas I - Uma noite de Natal

O velho Joaquim vivia só na sua pequena e velha casa do bairro pobre.
A mulher morrera, já fizera três anos.
Os filhos tinham seguido a sua trajectória na vida e estavam longe.
Reformado cedo por invalidez, vivia de uma pensão que mal dava para comer e comprar alguns remédios. Valia-lhe algum dinheiro que os dois rapazes lhe mandavam de vez em quando e a ajuda de alguns vizinhos, também pobres materialmente mas ricos de sentimentos.
Estava frio nessa véspera de Natal.
Mais um que iria passar somente na companhia das memórias de outros que foram bem mais alegres e das dores reumáticas que o atormentavam quasi em permanência.
Comeria uma sopa requentada, um pão com margarina, uma maçã já meia podre, beberia um trago de um tinto carrascão e depois iria para a cama com uma dor no peito que o vinha apoquentando nos últimos tempos. Ainda nada dissera ao médico do Centro de Saúde. E iria mais uma vez chorar a tristeza de ser velho e só.
Estava sentado no sofá sujo e roto quando bateram à porta.
Disse, tão alto quanto podia:
- Entre!
E a porta rangeu enquanto se abria devagarinho: era a vizinha Matilde, que também vivia em solidão, pois ficara sem um filho nas obras já há bastantes anos e sem o seu homem, muito recentemente.
- Posso, Sr. Joaquim?
- Entra Matilde, entra!
Ela aproximou-se do ancião e estendeu-lhe uma marmita amolgada pelo uso:
- Tem aqui um pedacito de um naco de peru que me foram levar a casa. Lembrei-me de lho trazer. Está quentinho.
- Muito obrigado! Entra e senta-te um bocadinho.
- Não posso demorar muito porque deixei o lume aceso.
- Estás a cozinhar? – perguntou o idoso.
- Estou! Este pedaço de peru saiu agora do forno.
- E vais passar a noite sozinha?
- Pois! Não tenho ninguém.
- E não queres vir fazer-me companhia? Comemos aqui os dois, conversamos e depois vamos dormir.
Ela pensou um pouco e depois retorquiu:
- Acho boa ideia! Então vou acabar de cozinhar e venho até cá com a comida.
- Eu podia ir a tua casa, mas tenho dores...
- Não se preocupe, Sr. Joaquim. Eu venho fazer-lhe companhia e assim também não me sinto tão solitária.
- Mas tu tens televisão e aqui não podes ver nada. Eu só tenho este velho rádio.
- Prefiro a companhia de uma pessoa que a da televisão. Então até já!
E a mulher saiu.
Pouco depois de ela voltar com uma cesta razoavelmente farta, começaram a comer e foram conversando.
Já perto da meia-noite disse ele:
- Matilde! Estou com frio. Vou-me deitar. Queres vir para a cama comigo? Assim ficamos os dois mais quentinhos.
Ela não contava com aquela proposta, mas não demorou muito a responder:
- Está bem, Sr. Joaquim! Agora vou arrumar a loiça e dar uma limpadela.
- Eu espero por ti!
E não tardou muito que ambos estivessem na cama, bem agasalhados, conversando até que o velho adormeceu.
Manhã cedo a mulher acordou e levantou-se como era seu hábito.
O homem estava quieto.

A luz do sol bateu-lhe no rosto sereno mas lívido de morte.
A Matilde tocou-lhe e sentiu-o frio e inerte como um pedaço de mármore.

39 Comments:

Blogger Leonor said...

é uma historia bonita. é uma historia da solidao de muita gente nesta epoca natalicia. porque a festa de natal tem duas caras. uma delas é muito ingrata.
disseste uma coisa importante: "prefiro a companhia da pessoa á televisao".
sem grandes alaridos a tua mensagem de natal é muito completa.

bom natal para ti antonio

abraço da leonoreta

3:51 da tarde  
Blogger Flor de Tília said...

Uma bonita mensagem de Natal, António.Este é o Natal que me toca, o Natal que defendo, o Natal que apregoo. A partilha das pequenas coisas,desde a comida às palavras é o mais importante nesta quadra. É disto que o Natal deveria ser feito, todos os dias deveriam ser feitos, porque está é a Mensagem do Nascimento de Cristo. Partilhar o pouco que se tem com aqueles quenasceram tão desprovidos de tudo quanto o Deus Menino.
Um bom Natal para ti,rodeado dos teus entes queridos e com eles vivendo o Mistério da Vida.
Beijinhos

6:25 da tarde  
Blogger wind said...

Bom conto com um final bonito, morreu em paz:)
Bom Natal para ti e teus:-)
beijos

6:36 da tarde  
Blogger Rosa Silvestre said...

Um conto bonito, uma mensagem bonita de Natal, de coisas simples desde a comida às palavras!Gostei desde o inicio até ao final!BOM NATAL, António!

7:45 da tarde  
Blogger Maria Carvalho said...

Magnífico António! Sabes que chorei?!Sem palavras. Beijos meus.

8:26 da tarde  
Blogger Leonor said...

fui a primeira a comentar esta nova vaga de historias?

gostei de saber.
perguntas quais serao os resultados da nova ideia? nao tenho duvidas. tendo em conta o teu historial, excelentes pois claro.

a nivel de escrita sera mais facil por um lado na medida em que nao ha tramas complicadas entre muitas personagens mas por outro lado sera mais dificil porque os temas podem repetir-se. é o que se passa com a minha ana e a minha leonor: e agora estas duas vão falar de quê.

bem, aguçaste a minha curiosidade, foi o que foi.

abraço da leonoreta

8:35 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

querido antónio,
não tenho televisão há 7 anos, pois optei por aproveitar todos os momentos que tenho com as pessoas que me rodeiam.
aqui o nosso joaquim era assim e talvez por isso conseguiu adormecer aconchegado. que bom sabê-lo.
uma beijinho e boas festas também para si. (obrigada pelo e-mail)

9:45 da tarde  
Blogger Fatyly said...

Fartei-me de chorar, xiça!!!!!! porque numa era onde impera o sexo, sexo e mais sexo e consumismo de tudo e mais alguma coisa, para muitos um aconchego fraternal é o suficiente. Um dos mais belos contos de natal!

Beijos e boas festas

10:18 da tarde  
Blogger saltapocinhas said...

FELIZ NATAL e um 2007 FABULOSO!

12:18 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Um Feliz Natal, meu Querido Contador de Histórias.
Mesmo que não comente, eu venho sempre aqui, sempre!

Beijo no teu coração, Amigo, que eu levo o meu tão mais cheio!

Gosto tanto de te ouvir!
Que Maravilhoso conto de Natal!

Cris

12:08 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Um abraço de quem não esquece o A.de nós.



Que sejam dias cheios de paz e muita saúde.


Beijo.A.

12:45 da tarde  
Blogger Leonor said...

ah antonio, como eu compreendo os sustos que se apanham com as manutençoes dos bloguers porque, acredita, eu nunca sei quais sao as suas pretensoes.

mas quando o meu blog desaparece do circuito, as minhas arritemias - eu tenho arritemias, mal de familia - aumentam e so nao tenho um fanico porque assinei um contracto com o divimo por um determinado tempo que ainda nao chegou.

nao sei o que é a versao beta mas percebo-te perfeitamente. qualquer versao que nos poe o blog de outra cor ou ás riscas é uma coisa má de certeza.
ainda bem que tudo já passou e fica á vontade. nessas alturas temos, we must, we ought to, que´é um dever ainda mais forte, de gritar a toda a gente.

ja te desejei bom natal? nao? entao desejo agora.

abraço da leonoreta

2:46 da tarde  
Blogger magarça said...

Um bonito presente, esta história que nos ofereces. Um bonito Natal para ti e toda a tua família. bjs

3:03 da tarde  
Blogger António said...

Para "Cris":
Olá, querida amiga!
Que surpresa teres aparecido (de forma "visível") por aqui.
Surpresa boa, claro!
Obrigado por isso, pelo teu comentário e pelos teus votos de Feliz Natal que eu retribuo.
Volta sempre!

Beijinhos

3:21 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

António,

Belíssima crónica nostálgica.
Comovente história de Natal!
O outro lado do Natal!
O real, não consumista, sem hipocrisia, solidário!

Para ti António, assim como para todos os que comentam,
Feliz Natal

GR

9:25 da tarde  
Blogger António said...

Para "GR":
Obrigado pela visita e pelo comentário.
Já são 23:26, mas ainda posso dizer:

FELIZ NATAL

Beijinhos

11:27 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

António:
Que linda história de Natal.
Este é o verdadeiro espírito de Natal.
Beijo

4:47 da tarde  
Blogger Caiê said...

Estava mesmo à espera de uma história de Natal. Não desiludiste! :) ;)
Já cheguei tarde à leitura, mas deliciei-me na mesma!
Abraço. Marraditas da PUG!

1:48 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Antonio,

Espero que tenha passado um optimo Natal.

História a rondar a verdade de muitas realidades que se passam um pouco por todo o lado, escrita com grande emoção das palavras e um sentimento muito forte de solidariedade.

JMC

8:51 da manhã  
Blogger António said...

Para "JMC":
Obrigado pela visita e pelo comentário.
Que os últimos dias de 2006 corram bem e todos os de 2007 corram ainda melhor.

Abraço

9:33 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Já venho tarde para te desejar um Bom Natal, mas fica o desejo de um bom Ano e que te traga pelo menos a edição de algum livro.
Gostei do conto.
Beijinhos.

1:24 da tarde  
Blogger Menina Marota said...

Uma história tão tocante, quanto é a realidade de muitos...

Gostei de a ler e sentir essa sensibilidade do teu coração.

Um abraço carinhoso e um FELIZ 2007

1:48 da tarde  
Blogger Poesia Portuguesa said...

Comovente e a triste realidade de muita gente.
Mas não morreu sozinho, como infelizmente acontece a muitos...

Grata pela partilha. Gostei de te ler.

Um abraço e umas boas entradas em 2007

1:50 da tarde  
Blogger Peter said...

Lindo e comovedor. Não encontro palavras.

Este é o Natal, o verdadeiro espírito Natalício.

2:56 da tarde  
Blogger Menina Marota said...

Oh meu querido António, até vim aqui responder-te!

Então eu não tenho um texto escrito por mim na quinta-feira, dia 21 Dezembro e cujo título é "Entremos...É Natal..."

Pois... tu é que não me lês....

Um abraço carinhoso e "maroto" eheheh

(adorei ver-te "dançar"... não digo onde... mas....danças muito bem!) :-))))

3:22 da tarde  
Blogger Flor de Tília said...

Passei por aqui e dei por mim a ler , mais uma vez, este teu bonito conto de Natal. Uma história do verdadeiro quotidiano de muita gente de fracos recursos, onde não faltam a doença e a solidão. Hoje em dia , cada vez mais, partilhamos menos com quem precisa de uma palavra, de um caldo quente, de ser ouvido, de uma pequena ajuda... A realidade do teu conto é comovente e não deixa de ser um apelo para que olhemos aquele ou aqueles que estão à nossa beira desprovidos de tudo.Pratiquemos pois a Solidariedade com Amor.
Formulo votos para que continues na rota dos contos curtos de grande mensagem. Muito bom este conto!
Um Ano Novo com tudo quanto desejas e mereces.
Um beijo com amizade

6:38 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

De facto, a sua escrita é óptima! Parece-me, contudo, mais adequada para publicação em livro que em blog onde se passa, muitas vezes olhares rápidos pelos textos que se querem curtos, sob pena de o utilizador desistir de os ler. Como sabe, ler em monitor cansa mais que em papel! Li o seu pedido de opinião no escrita criativa. E aqui a deixo!
poesiamgd,blogspot.com

6:43 da tarde  
Blogger António said...

Para "anónima":
Obrigado pela opinião.
Penso que poderemos trocar ainda mais impressões.
Um bom ano de 2007

7:02 da tarde  
Blogger Heloisa B.P said...

ANTONIO*
MEU AMIGO*,
Trago-LHE meu ABRACO DE AMIZADE e, meu sincero pedido de desculpas, por minha ausencia!

CONTINUACAO DE BOAS FESTAS!

Heloisa
*********

11:19 da tarde  
Blogger Peter said...

António

Comecei hoje a publicar os textos e as fotos do meu amigo Paiva sobre o Porto:

"O PORTO : O MORRO E O RIO (à margem de uma filmagem)"

Vale a pena ler.

9:56 da manhã  
Blogger soeumesma said...

É, ando sem tempo, fugida e até meia aluada. Deve ter sido por ter ficado um ano mais velha, pois.

Mas não podia deixar de vir fazer a última visitinha deste ano que nos deixa para desejar aquelas coisas todas da praxe! Boas saídas, melhores entradas e que o ano de 2007 traga tudo o que mais desejamos. E se não for ainda o ano bombástico ao menos que seja igual a este que deixamos para trás porque se as coisas não piorarem é bom sinal!

Mas como prá frente é que é caminho venha 2007 que a malta está cá para o receber a preceito!

Beijocas e até para o ano!

3:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

uma noite para morrer como qualquer outra...
Os teus contos são sempre bem elaborados. Gosto!
jinhos

9:52 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Doloroso, mas com uma réstia de felicidade. Não morreu só! Parabéns!
poesiamgd,blogspot.com

10:24 da manhã  
Blogger António said...

Para "anónimo":
Obrigado pelo comentário.
Porque não comentas usando o link para o teu blog?
Já é a segunda vez que escreves no meu (que me lembre) e nunca o fizeste.
Gostaria de te visitar.

Feliz 2007

Saudações

11:06 da manhã  
Blogger Amita said...

Comovente,meu amigo, muito comovente.
Uma história muito linda
Um bjinho grande

7:55 da tarde  
Blogger Maria Pereira said...

Para quando um livro? Li alguns dos contos e gostei de todos, por isso continuei a ler. No entanto, este não pude deixar de comentar... Fez-me chorar, e é tão bom ler algo que nos faça abstrair da realidade... Se isto é possível com um só conto, um livro seu seria com certeza um companheiro fiel para umas quantas semanas. Parabéns!

2:15 da manhã  
Blogger António said...

Olá, Maria Pereira!
Obrigado pelas visitas e pelo comentário.
Os editores não parecem muito interessados em publicar coisas de desconhecidos.
Entretanto vou publicando aqui e vou tendo algumas pessoas que me lêem e me alimentam a auto-estima.
Já deves ter reparado que tenho um 2º blog que é a continuação deste:
http://eusoulouco2.blogs.sapo.pt
Se estiveres interessada...

Beijinhos

10:22 da manhã  
Blogger Sergio Bianchi said...

Um belo e singelo conto...Que possamos todos estarmos em paz, independente de solidão, e que lembremos sempre do real sentido desta data...Paz e Luz à todos!...Um feliz natal e um ano repleto de renovações.

7:48 da tarde  
Blogger António said...

Obrigado pelo comentário!

ESte blog está parado mas há o "Eu sou louco! (II)" que é a continuação e tem o endereço http://eusoulouco2.blogs.sapo.pt

Se estiveres interessado...

Abraço

10:11 da tarde  

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