Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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domingo, outubro 16, 2005

Reencontro - parte II

- Boa tarde! – disse Paulo após entrar no seu apartamento e enquanto se aproximava de sua mulher para lhe dar o habitual beijo nos lábios.
- Boa tarde! – respondeu Inês pondo o rosto a jeito para que se cumprisse o ritual – como correram as aulas?
- Bem! Nada de especial a assinalar – respondeu enquanto se dirigia para o quarto que lhe serve de escritório – Hoje o dia foi extenuante. Aulas desde as 8 e meia da manhã até às 6. Mal tive tempo para comer – queixa-se o professor.
- Não ouvi nada do que disseste – disse a mulher.
- Deixa lá! Não foi nada de especial! – suspirou. O rapazinho está em casa?
Do outro lado, o silêncio.
- É surda, o raio da mulher – resmungou.
Verificados os papéis e arrumado o que pretendia, foi para a sala não sem antes ligar o seu computador.
- O Diogo está em casa? – repetiu.
- Ah…agora ouvi. Já sabes que não entendo o que dizes quando falas lá de dentro, especialmente com água a correr – esclareceu a professora do básico.
- Parece que não está! – conclui o pai de Diogo.
- Foi lá para baixo brincar um bocado. Esteve toda a tarde a estudar – explicou ela.
- A que hora jantamos? – quis saber o homem.
- Daqui a meia-hora.
- Portanto, às 8 – afirmou depois de ter olhado o relógio do leitor de DVD´s que repousa no pequeno móvel em frente da poltrona em que está sentado – é melhor chamar o rapaz.
- Chama-o tu, por favor!
- Ok, ok – condescende, enquanto se levanta lentamente e se dirige à larga janela da sala.
- Diogo! Sobe! Vamos jantar! – gritou para ser bem ouvido pelo filho que está com outros jovens adolescentes no jardim em frente ao prédio.
O moço não demorou mais de um minuto para vir numa corrida saltitante até à porta que abriu digitando um código no sistema electrónico. Quando o pai lhe dá alguma ordem ele obedece de imediato. Com a mãe não acontece exactamente o mesmo. Ela tem de repetir a ordem, mas não muitas vezes. Também é autoritária, mas é mãe. Pouco depois tocou a campainha da habitação.

- Já está aberta! – avisou o pai em voz alta.
- Boa tarde, papá! – disse o moço enquanto beijava o pai, depois de ter entrado.
- Olá, filho! Então as aulas correram bem?
- Correram, sim – respondeu o miúdo enquanto corria a refugiar-se no quarto.
- Vai tomar banho, já! – interveio a mãe.
- Ouviste? Vai já tomar banho! O pai está cansado e com fome – reforçou Paulo a ordem da mulher.
E o rapazito, sempre aos saltos, fechou-se no seu quarto de banho.
- O raio do rapaz nunca pára quieto – disse, com um sorriso nos lábios, a mãe.
- É natural nesta idade.
- Hoje chegaste mais tarde – observou Inês.
- Um pouco. Houve um acidente logo a seguir ao nó de Vila do Conde. Perdi cerca de meia hora.

- Não sei porque não telefonaste?
- Não tinha carga no telemóvel – justifica-se o homem.
- Já sabes que não gosto que te atrases e fiques sem dizer nada – resmungou Inês.
- O atraso também não foi nada de especial – e continuou a olhar para o televisor onde ía vendo e escutando as notícias.
Entretanto, Inês fechou a porta de ligação entre a cozinha e a sala para evitar que o cheiro do peixe a fritar passasse para a zona mais nobre.
- Com licença! É o que se diz na minha terra – desabafou ele.
Passados alguns minutos estão os três sentados a jantar.
- Então o que aprendeste hoje? – quis saber o pai.
- Tive Matemática, Inglês…
Toca o telefone.
Paulo levantou-se e foi atender, sentando-se novamente no seu sofá.
- Quem fala?...Ah…és tu! Está tudo bem?... está sem carga…depois de amanhã?...quarta, sim…também é o único dia compatível…no sítio das últimas vezes…ok…às oito e meia…certíssimo…cumprimentos à Manela e aos miúdos…lá estarei…um abraço.
Entretanto começou o noticiário das oito. Paulo elevou o som do televisor, pousou o auscultador e regressou ao lugar.
- Quarta-feira não como em casa. Vou à janta habitual com o Jorge e o Mário – informou a mulher.
- Jantar e não só! Vê lá se chegas a casa a horas decentes – disse ela pouco satisfeita.
- Já sabes que estes jantares são a minha escapadela. São bons para desopilar.
- Desopilar! Acho que é uma boa palavra.
- Deixa-me ouvir estas notícias que são importantes – pediu Paulo.
- A conversa não te agrada! – sentenciou Inês.
Ele não respondeu.
E até ao fim da refeição nada de especial se conversou, salvo umas recomendações da mãe ao filho.
Depois do jantar, todos ajudaram a levantar a mesa, a mãe tratou da limpeza da cozinha e Diogo foi quem enxugou alguma loiça com um pano.
Paulo fez um café, voltou ao sofá e lá ficou até ao fim do telejornal. Depois foi para o seu PC onde se entretém habitualmente até ir dormir.
Diogo voltou ao quarto. Agarrou-se ao computador para brincar com uns jogos.
Inês ligou o rádio e começou a trabalhar na mesa da sala. Um dos quatro quartos funciona como seu escritório, mas gosta muito de ficar na mesa de jantar a fazer o que tem a fazer. Hoje não usa o seu PC portátil, comprado recentemente e que gosta de exibir, especialmente perante as colegas.
Por volta das dez e meia a mãe ordenou ao rapaz para se deitar. O pai, prevendo que a ordem não fosse cumprida com o mínimo de rapidez levantou-se, foi até à porta do quarto do filho e disse:
- Diogo! Cama!
Regressou ao seu lugar onde, pouco depois, o rapazinho lhe veio dar um beijo de boas noites. E continuou a saltitar até à sala onde se despediu da mãe, não sem esta lhe ter feito mais recomendações. Algumas já muitas vezes repetidas.
- Ó mãe! Já sei isso tudo! Já me disseste tantas vezes!
E zarpou!
Por volta das onze e meia Inês foi para a cama dizendo um seco “Boa noite” ao marido quando passou pelo escritório.
- Já está amuada outra vez. Uff! – disse para si próprio.
Finalmente, por volta da meia-noite e tal, foi Paulo quem se recolheu. Procurou não acordar a mulher. Sabe que se tentasse alguma aproximação quando ela está amuada, levava uma nega.

O rádio despertador começou a tocar cedo. Às sete e vinte. Ambos puseram os pés no chão no mesmo minuto. Inês foi para o quarto do filho. Paulo para a casa de banho com um pequeno rádio portátil.
Depois de feita a higiene matinal todos tomam um frugal pequeno-almoço na mesa da cozinha. Só nesta altura se conversa alguma coisa. Antes, só ensonados bons-dias.
E a mãe não deixou, como sempre, de fazer mais recomendações ao mocito:
- Diogo, levas isto?
- Diogo, fizeste aquilo?
- Diogo, não te esqueças daqueloutro.
Nem o pai escapou ao eficaz controlo da matriarca:
- Paulo, não te esqueças de avisar se chegares mais tarde.
E saíram ao mesmo tempo de casa. Mas não antes que Inês fizesse uma última verificação dos pormenores que quinze anos de casada e de responsável pelo bom funcionamento do lar lhe ensinaram.
O filho foi com o pai para Matosinhos.
A mãe conduziu a sua viatura para a escola, muito perto de casa. Podia ir a pé, mas só o faz às vezes.
Como todos tem horários diferentes a cada dia, pais docentes, filho discente, é Inês quem tudo controla diariamente. A eficácia do funcionamento familiar depende da sua permanente atenção e orientação.
Normalmente nenhum vem almoçar a casa. As cantinas ou restaurantes existem para ser utilizados. Como vivem com razoável desafogo financeiro, não tem de fazer muitas contas.
Eis uma família da média burguesia suburbana, em crise.

25 Comments:

Blogger Caiê said...

Atenção, já se nota que o senhor está mais cansado dela que de leite azedo... que ela está mais farta da casa que duma fábrica... e que o puto prefere qualquer outro lugar e pessoal que ali... esse pessoal mal se fala e não se escuta!
Deste-lhes e bem! ;)Continua!

2:14 da manhã  
Blogger Maria Carvalho said...

Acho tristíssima esta família...vê lá que volta vais dar ao texto. Beijos

5:04 da manhã  
Blogger Leonor said...

uma familia em crise... e bastante aguda já.

creio que o miudo é aquilo que se diz nos meandros psicológico de hoje em dia: hiperactivo.

eu dava-lhe uma lambada se ele viesse aos saltos para o meu lado, rssss

abraço da leonor

2:02 da tarde  
Blogger wind said...

A última frase resume tudo:) Um casal organizado pelas aparências! beijos

3:36 da tarde  
Blogger Su said...

gostei de ler, apesar de nos mostrar uma familia triste e seca
a crise instalou-se faz tempo.... esperemos por mais...
jocas maradas

5:59 da tarde  
Blogger António said...

Para "sonamaia":
Obrigado pela visita.
Espero que gostes desta minha nova blogonovela ultralight e pimba.
Vou-me esmerar para produzir obra asseada...eh eh
(se tiver tempo para isso)
Beijinhos

6:51 da tarde  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Querido António

Esta família vai dar que fazer!

Está um ambiente deveras pesado, diria até, uma família verdadeiramente infeliz.

É claro que tu estás mais uma vez de Parabéns! Pois conseguiste transmitir e muito bem, o ambiente que envolve estas três personagens. Uma família em crise... aguda!

Beijinhos

9:11 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A história promete!
Dinheiro não é problema, mas a falta de diálogo é que é o mais grave!
Infelizmente é o retrato de muitas famílias que todos nós conhecemos!
Mas escreves de uma forma sublime! Senti a carência afectiva da família, o desaconchego, a necessidade de fuga do Paulo, nem que seja num jantar entre amigos!
Lentamente e quase sem se dar por isso, a comunicação os sentimentos vão-se desvanecendo e quando se quer remediar o problema, já é tarde!
António, será este o primeiro livro a ser publicado?
Dinheiro??? Faz-se uma colecta, falasse com um editor, vamos todos ter que conseguir!

Um bj,
GR

10:12 da tarde  
Blogger António said...

Para "GR":
Obrigado pela visita.
Aprovo a ideia da colecta...eh eh
Este fim de semana consegui escrever dois capítulos (ufff!).
Já estão 6 escritos (falta a revisão final) e 2 publicados, como sabes.
Agora só no fim de semana é que volto a escrever. Durante a semana não dá!
Beijinhos

11:04 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Relativamente aos elogios da escrita, faço o transfer para os comentários anteriores. Relativamente à história parece-me que 15 anos de casamento ainda não serão suficientes para a monotonia aguda extrema e para o cabide ao canto; Assim, se fizeres o favor, dá lá uma oportunidade ao casal e cria alguma agitação que os faça espevitar. Afinal, ainda estão longe da história de alguns casais que mandam pratos um ao outro, dormem em camas separadas e criam conflitos de educação com os garotos. Gostei de te ler!!!Fica bem.

2:30 da manhã  
Blogger Menina Marota said...

A rotina de um casal. Boa ou má, depende de quem a vive, da amizade e do amor consolidado.
Eu costumo dizer, que não há rotinas instaladas, desde que queiramos fortalecer um relacionamento, que há partida teria todos os ingredientes para ser sólido.

Mas quando visionamos, do lado de fora, um relacionamento, que parece carecer de alguma alegria, teremos que "ver" ambos os lados.

É lógico que sou mulher. Tenho uma visão diferente de ver as coisas.

Pergunto-me, se fosse a Inês a descrever este dia, como o faria ela?

Que sentimentos transpareceriam do seu olhar, após um dia de trabalho, a lida da casa, a preocupação com o atraso do marido, as inquietações com o filho?

Achar que esta família está em crise, será um pouco prematuro. Talvez esteja cansada. Talvez lhe falte alegria. Umas boas gargalhadas, uma anedota, contada de repente, sem ninguém contar.

A rigidez de comportamentos, gera muitas vezes a rotina. Soltar os sentimentos, é talvez uma forma de a quebrar.

Ah...mas quem sou eu para estar para aqui com esta conversa?

(solto um risinho e penso cá para mim - pois é rapaz, se soubesses o que irrita as mulheres, quando estão na cozinha atarefadas e os homens pensam que temos as orelhas na boca deles... nunca falariam virados para o lado! eheh)

Gostei de ler-te. Desculpa a extensão do meu comentário. Mas eu sou assim...impulsiva!

Um abraço e boa semana de trabalho ;)

12:04 da tarde  
Blogger LUIS MILHANO (Lumife) said...

Visitando pela primeira vez gostei desta descrição da vida de um casal dos nossos dias. Vou continuar a visita e convidá-lo para quando puder passar pelo "Beja".

Até breve

12:34 da tarde  
Blogger INFORMANIACA said...

Pais docentes...filho discente...e uma relação indecente...

P.S. - A propósito António...o jantar de sexta-feira correu lindamente...pormenores nem penses...a Inês que se cuide!

Heheh
Bj
LC

2:33 da tarde  
Blogger GNM said...

Fico a aguardar pelos proximos capitulos...

Fica bem...

Desejo-te uma excelente semana!

3:05 da tarde  
Blogger margusta said...

olá António,
Mais uma vez conseguis-te tranportar-me no tempo para dentro da tua narrativa....as descrições são perfeitas..senti o cheiro do peixe a fritar...ihihihih

Quanto á familia , penso que é uma familia igual a tantas outras..é a rotina, penso que não se pode dizer logo que é um casamento em crise...putos aos saltos ...sei bem o que isso é..hiperactividade conheço muito bem(fala a voz da experiência).
Quanto á Inês que se cuide...porque cá para mim estes jantares com os amigos...humm..ainda vão dar raia(como se diz cá para os meus lados).
Fico á espera de mais.
Beijinhos muitos para ti.

9:56 da tarde  
Blogger Xuinha Foguetão said...

Não vais mt à bola com a Inês...

Lembra-me para não me casar! :)

Beijocas.

10:19 da tarde  
Blogger Anna^ said...

Mais uma vez se lê isto sem fazer pausa...uma escrita que envolve...parabéns :)
Qto ao desenrolar da história acho prematuro falar numa crise...uma rotina instalada q possa eventualmente conduzir a uma...aí sim ,mas tudo pode acontecer se estiverem atentos aos sinais e se acharem q vale a pena dar a volta por cima :)

bjokas e fica bem ":o)

10:47 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Pois é António, realmente, estás a relatar a rotina nua e crua, da maioria dos casais, eu própria já a vivi no meu anterior casamento. Claro que aprendi com os erros e actualmente, não dispenso, um bom beijo de língua á chegada, uma horita 1/2 em pvt com cada dos meus rapazes, que têm sempre maravilhas a contar, e impreterivelmente um boa hora de dialogo acérrimo com o meu Caranguejo. Assunto? Claro que existe assunto é necessário é saber estimular uma conversa, é claro que quando os temas interessam aos dois, ainda melhor. Eu sou boa ouvinte por norma, mas se o tema me interessa sei ser boa conversadora, também. Realmente aprendi que o dialogo é a fonte, é o elixir de um relacionamento. Acho que se um dia o meu com o Caranguejo acabar, não vai ser por falta de dialogo... Vê se colocas a "esposa" a telefonar para o marido assim que ele se atrase ao invés de ficar carrancuda á espera que o telefone toque... Colocar o filhote a contar diabruras aos progenitores, também não seria de todo mau... mas tu já tens quase tudo escrito lolol e ainda bem porque bom contador de histórias és tu, e escreve-las, ninguém melhor que tu o faz. Jinhos

1:35 da tarde  
Blogger LUIS MILHANO (Lumife) said...

Agradecido pela visita ao "Beja".
Não, não sou o Orlando Fernandes. Cada um no seu barco...
Sempre que possa aguardo uma visita.

Até breve

6:11 da tarde  
Blogger Misty said...

Ainda não tive tempo pra ir comprar pipocas! Mas tou a caminho!!

Só tempo pra deixar beijinho

:*

6:41 da tarde  
Blogger SFeneacoach said...

É a média burguesia suburbana que está em crise?....ou a família?! ;)
Acho que esta é a história da maioria das famílias de hoje...infelizmente, mas lida assim, realmene, atinge outra dimensão: socorro, eu não quero ser asssim!!!!!!!!!!!!!!

1:45 da tarde  
Blogger SFeneacoach said...

* realmente!

1:47 da tarde  
Blogger Zica Cabral said...

Um casamento moeno e insonso sem codimentos nenhuns para alegrar a vida de qualquer um dos conjuges. Infelizmente a rotina mata a paixão e o amor é morte tb porque "já não vale a pena". A acomodação é uma palavra de significado terrivel...........
Continuo a gostar e tenho mais dois para lêr.
Beijinhos Zica

8:09 da manhã  
Blogger heidy said...

Palpita-me que falta aí muita coisa. Dialogo; fuga à rotina; amor?
Mete impressão, mas é assim que vivem a maior parte das familias portuguesas. Enfim... lá vou eu para o texto seguinte...

12:52 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Looking for information and found it at this great site...
»

1:25 da tarde  

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