Histórias curtas X - A ruiva e o namorado
Para falar com mais rigor, desde que foram colegas na escola primária e depois no preparatório e no secundário.
Ela foi sempre uma boa aluna, estudiosa, interessada, mas ele era um rapaz brilhante, daquelas inteligências acima da média que sabia muito mais do que aquilo que os programas e os professores exigiam.
Era também um excelente andebolista e não faltava a uma missa semanal pois era muito religioso, um católico praticante.
Além disso eram quasi vizinhos.
Eles e mais três rapazes e duas raparigas andaram sempre juntos até ao 9º ano.
Depois separaram-se, fizeram o 12º e cada um seguiu o seu curso: o Gustavo foi para Engenharia, a Sónia para Jornalismo, a Luciana para a Escola Superior de Educação, o Pedro para Direito, a Joana também para Jornalismo, e o Luís e o Carlos para Desporto.
Os namoricos que até aí houvera tinham sido mais brincadeiras de adolescentes do que relações consistentes e sérias.
Mas agora, na fase terminal dos seus cursos, mais crescidos e maduros, Luís e Joana bem como Pedro e Luciana andavam envolvidos numa relação bem intensa.
Sónia sempre tivera um fraquinho por Gustavo e tentava demonstrá-lo com insistência, até que atingiu o seu intento conseguindo que o rapaz lhe pedisse namoro. Mas, em matéria de sexualidade, ele sempre dissera que queria ir virgem para o casamento e não queria ter qualquer tipo de sexualidade com a amiga de infância antes do matrimónio.
A rapariga, magra mas elegante, com uns cabelos ruivos que condiziam muito bem com as sardas que tinha na cara e no resto do corpo, por vezes lamentava-se ao rapaz das opções dele. Mas o Gustavo era inflexível.
- É pecado! Por isso gasto as minhas energias no desporto.
De vez em quando também se lamuriava com as amigas.
- Mas gosto dele o suficiente para não discutir as suas ideias. Respeito-as e mantenho-me casta sem grande sacrifício. Lá virá o dia em que vou tirar a barriga de misérias - dizia.
O Gustavo, alto e espadaúdo, cabelo cortado muito curto, tez um pouco morena e olhos castanhos, estava agora no último ano do curso.
Já dava aulas e preparava-se para seguir a carreira de docente universitário; eventualmente criar uma empresa de projecto para ter sempre contacto com a vida prática e tentar ganhar mais dinheiro.
Ele era filho único ao contrário dela que tinha mais duas irmãs. Parecidas, todas elas. Tinham puxado à mãe.
Mas, um dia, seriam umas sete da tarde, o telemóvel da Sónia tocou:
- És tu, Joana?
- Sou! Estás bem?
- Sempre, felizmente! – respondeu a namorada de Gustavo.
- Olha! Preciso de falar urgentemente contigo – surpreendeu a também estudante de Jornalismo.
- Urgentemente? Então porque não me dizes já o que tens a dizer?
- Porque quero fazê-lo pessoalmente – disse, com firmeza, a Joana.
- Estás a deixar-me intrigada. Há alguma coisa grave? – perguntou a Sony.
- É relativamente grave mas não te preocupes pois não morreu ninguém nem vai morrer e nem sequer é um caso de doença – procurou sossegar a amiga.
- Mas então não podes mesmo dizer nada? Nem uma dica?
- Nada de nada! Encontramo-nos logo, depois de jantar, no café em frente dos Bombeiros. Não faltes, ok? – voltou a Joana a ser incisiva.
- Pronto! Pronto! Eu estou lá por volta das nove horas. Agora deixaste-me ansiosa.
- Está combinado minha querida! Logo te conto. Xau! – despediu-se a amiga, misteriosa como nunca o fora.
Às nove horas da noite já a Sónia estava sentada numa mesa saboreando um café e um cigarro, coisa que só fazia raramente pois não era do agrado do Gustavo.
- Olá!
Olhou para cima e viu a Joana a despir um casacão e depois a sentar-se junto dela.
Antes de começar a falar deu um beijo à amiga e pediu um café.
- Olha, Sónia! – começou num tom solene.
A outra olhava-a atentamente.
- O que vais ouvir não te vai agradar nada. Mas eu não posso deixar de to dizer.
- Diz! – ordenou a jovem sardenta.
- Hoje à tarde vi o Gustavo e o Carlos a entrarem juntos para uma residencial. Não tenho a certeza absoluta, mas tudo me leva a pensar que eles tem uma relação homossexual – arrasou a Joana.
A amiga nada respondeu; ficou estática, olhar fixo na amiga mas de sobrolho franzido.
E foi a morena quem continuou:
- Depois disso estive a pensar em toda aquela religiosidade e desejo de se manter casto do teu homem. Sempre me pareceu um exagero mas cada um tem os seus princípios, e como ele teve ou tem, não me lembro ao certo, dois padres na família, não me levantou suspeitas.
- Mas tu tens a certeza? – interrompeu a namorada traída.
- Que os vi entrar juntos, isso vi. Mas só isso! Na minha opinião acho que se deve tirar tudo a limpo. Mas tu é que és a namorada dele e, um dia mais tarde, serás a sua esposa. Acho que deves saber com quem andas antes de te comprometeres mais – continuou a dissertar a morena.
- Pois é! Até estou atordoada. Neste momento não sei o que fazer. Tenho de dormir sobre o assunto e deixar que tudo seja mais claro na minha cabeça.
- Oh Sónia! Tu desculpa ter falado nisto, mas achei que esta era a única forma correcta de agir.
- Fizeste bem! Agora vou-me deitar.
- Ainda não falaste com o Gustavo? Nem por telefone? – interrogou a namorada do Luís.
- Não! Nem quero falar! – e desligou o celular.
- Vou perguntar ao Luís se o Carlos tem alguma namorada – pensou, em voz alta, a Joana.
- Pode não ter, mas já teve relações com mulheres. Eu sei de uma que já foi com ele para a cama – afirmou a sardenta.
- Então é capaz de ser bi.
- Pois é! Olha! Vou-me embora! Depois falamos, está bem? – e a Sony levantou-se, beijou a amiga, pagou ao balcão os dois cafés e saiu.
Deitada na cama, luz apagada e olhos molhados, a jovem ruiva começou a rever o filme da sua vida com o grande amigo, agora namorado, que a tinha desde sempre fascinado pela sua figura e inteligência. E lembrou que sempre que ela tentara aproximações ele reagira sempre da mesma forma: rejeitando todo e qualquer avanço.
E lembrou-se ter lido numa qualquer revista que o actor americano Rock Hudson só assumiu a sua homossexualidade poucas semanas antes de morrer com sida e que, para evitar que se falasse dele, fizera um casamento de conveniência com uma rapariga que, aliás, durou pouco tempo. A jovem sentiu-se como a cortina que era usada para tapar o outro lado da vida do seu querido Gustavo.
Tinha de o confrontar com o facto!
De supetão!
Não só para ouvir o que ele tinha para dizer como para ver as suas reacções.
E fá-lo-ía com a maior brevidade possível. Não queria viver situações falsas.
No dia seguinte, logo que acordou após uma noite mal dormida, ligou o celular e pouco depois entraram várias mensagens. Duas eram do Gustavo.
Lavou a cara e a boca para despertar melhor e ligou para ele que atendeu logo de seguida.
- Olá, Sony! Que te aconteceu ontem à noite que liguei várias vezes e deixei duas sms’s? E depois ainda fui a tua casa mas disseram-me que estavas cansada e tinhas ido dormir – falou o jovem.
- E é verdade! Estava cansada e doía-me a cabeça. Não estava disposta para conversas.
- E hoje estás bem?
- Acho que sim! Vamos encontrar-nos hoje? – perguntou ela.
- Podemos ir almoçar juntos. Eu passo pela tua escola à uma, serve?
- Humm...está bem!
- Então até logo e as melhoras! Beijinhos! – disse o rapaz.
- Beijinhos para ti, também! – respondeu a moça.
À hora de almoço, a Sónia saiu do edifício escolar e logo viu o carro vermelho do namorado. Dirigiu-se a ele, entrou, beijou os lábios do Gustavo e este arrancou só parando no parque de estacionamento de um restaurante.
- Gustavo! Não saias já! Quero esclarecer umas coisas contigo – disse ela, com uma voz diferente do habitual.
O quasi engenheiro notou isso e aquiesceu:
- Estão diz o que tens a dizer!
- Gustavo! Tenho fortes suspeitas de que tu sejas homossexual, andes com um homem, um pelo menos, e me estejas a usar como máscara de hetero. Quero que me respondas com toda a sinceridade. Lembra-te que, qualquer que seja a resposta que me dês, a nossa amizade fica intocável. Só poderá ser abalada se tu continuares a mentir e a usar-me – despejou a rapariga.
- Mas quem é que te meteu uma coisa dessas na cabeça? – disse ele, aparentemente descontraído.
- Alguém te viu ontem a entrar para uma residencial com o Carlos – atirou a Sónia.
Agora o Gustavo Galvão ficou calado a pensar que tinha sido descoberto e que entre continuar com uma mentira que um dia seria inevitavelmente posta a nu e com consequências muito mais devastadoras ou dizer já a verdade e tentar que isso não se espalhasse, fez rapidamente a opção:
- É verdade, Sónia! Eu sou gay e só tenho de te pedir desculpa por te ter usado. A minha intenção era não ter namorada para me ocultar dos preconceitos da sociedade, mas tu tanto insististe... Penso que o namoro acaba aqui. Mas quero continuar teu amigo porque sou mesmo muito teu amigo.
As lágrimas deslizavam pela face sardenta da jovem.
- Tenho de desaprender a amar-te e olhar para ti só como amigo. Eu adoro-te, tu sabes, e isto é muito violento para mim – disse ela.
- Também gosto muito de ti, mas eu sou como sou e não consigo mudar. Só me admiro de não teres topado mais cedo. Ahh...e quem está a par do assunto? – procurou ele proteger o seu grande segredo.
- Além do Carlos...deixa-me telefonar!
Pegou no celular e ligou:
- Sou eu! Acabo de ter a confirmação das nossas suspeitas por parte do Gustavo. Já contaste a mais alguém?
Do outro lado respondeu a Joana:
- Não! Ainda não!
- Então faz de conta que isto foi um sonho do qual acordaste e vais esquecer.
- Está bem! O namoro acabou?
- Claro! – disse a rapariga traída.
- E como vais justificar o fim da relação? – perguntou a estudante que estava do outro lado.
- Isso, eu e ele vamos combinar. O importante é que ninguém saiba que o nosso grande amigo Gustavo é como é porque nenhuma de nós o quer ver sendo humilhado. Valeu?
- Valeu!
- Então depois encontramo-nos para falar de tudo menos de uma coisa que não passou de um sonho. Xau. Beijinhos – e a Sónia desligou.
Virou-se para o rapaz e disse:
- Só uma pessoa sabia. Quem te viu com o Carlos. Podes estar descansado que é alguém que gosta muito de ti e não te vai querer prejudicar. E agora vamos almoçar?
E os dois encaminharam-se para a porta do restaurante de mãos dadas.