A noite de S. João
A noite passada, pouco depois de ter acabado o jantar, deitei-me na cama, vestido e sobre a roupa, pensando descansar uns minutos para depois ir dar uma volta a pé.
Afinal era a noite de S. João!
Pois adormeci e só acordei já passava das cinco da manhã.
Isto fez-me pensar em como o tempo passa e, muito mais depressa do que se possa pensar, estamos com os pés para a cova.
E recordei-me que a noite de S. João era sagrada para o meu pai.
Desde miúdo que me lembro dele e de minha mãe saírem, já tarde, pelas onze e tal, e só voltarem pelas quatro ou cinco da madrugada.
Eu e a minha irmã, mais nova dois anos, ficávamos em casa, claro.
Mas connosco ficava a avó paterna, a vovó Mimi, que para lá se mudava por uma noite e um dia para ficar a zelar pelos netos.
Passada essa fase inicial em que a noitada me era restringida, seguiu-se a fase de sair com os pais. Já não me recordo quando fui viver a minha primeira noite de S. João, mas deve ter sido por volta dos dez, doze anos.
Estou a falar da cidade do Porto, pois as festas deste santo popular são comemoradas em mil e uma cidades, vilas e aldeias por esse país fora.
Depois das minhas primeiras experiências como noctívago sanjoanino, não pude deixar de dar certa razão ao meu pai, bairrista como vi poucos, e que dizia ser esta festa única no mundo, pois não havia mais nada além de pessoas que, de facto, nada comemoravam. Gente que, sorridente, batia com o alho porro na cabeça dos outros.
Para quem nunca viveu esta experiência, isto pode parecer profundamente idiota.
Mas não é!
De facto, cria-se uma empatia tal entre todos, que este comportamento prosaico e bizarro se transforma, como que por milagre, num ritual de paz, harmonia, concórdia e verdadeira comunhão entre os homens.
Depois, lá pelas três, vinha o tempo de comer um arroz de cabrito na casa Casais, junto ao jardim de S. Lázaro, que era a tasca de preferência do meu pai (para este fim, bem entendido).
Lembro-me de o velhote ter um cliente e amigo em Cascais, pessoa de bem e com muito garbo, que foi convencido por ele a vir passar uma dessas noitadas ao Porto.
E lá vieram o Sr. Pereira e a sua mulher, a D. Hortênsia. Um pouco constrangidos, confessaram depois. Mas, após terem vivido essa noite, juraram que nunca haviam visto tal empatia entre as pessoas. E dai por diante e durante alguns anos, lá vinha o casal por aí acima para sentir e gozar a noitada de S. João.
Por voltas dos quinze, dezasseis anos, comecei a ir com os amigos. Primeiro era o bailarico dos bairros, ao fundo de Fernão de Magalhães e já perto do Campo 24 de Agosto, depois pelas ruas da baixa: Santa Catarina, Santo António, Clérigos, Mouzinho da Silveira para ir à Ribeira ou Alexandre Herculano para descer até às Fontaínhas. Nesses anos sessenta foi quando a populaça começou a procurar outros locais, nomeadamente a rotunda da Boavista.
Mas, muito rapidamente, e com a entrada no ensino superior, deixei o grupo de rapazes e passei a integrar um grupo de moços e moças, quasi todos estudantes, e lá fazíamos os nossos comboios para incómodo dos mais pacatos foliões.
Foi nessa altura que começou a ocorrer em força a substituição do tradicional alho porro pelo barulhento e chato martelinho de plástico.
Em má hora! Em má hora!
Depois foi a ausência por causa do serviço militar.
De regresso à terra natal, a noitada deixou de ser em grupos, mas com um ou dois amigos, ou amigas ou então com a namorada da ocasião.
Até que veio o casamento e os hábitos alteraram-se.
Nessa altura já os festeiros se espalhavam por várias zonas da cidade e eu e a minha mulher começamos a ir à Foz, juntamente com outros casais e respectivas proles, ao apartamento de um amigo e sua companheira para depois, em plena praia, deitar um fogo de artifício muito simples e largar balões que, na sua maior parte, caíam na areia ou no mar, um pouco adiante. Quando algum lograva subir era o gáudio da pequenada, e o orgulho dos autores do feito.
Mas esta fase passou.
Depois seguiu-se o período familiar.
Eu, a mulher e os dois rapazes voltamos a calcorrear as ruas da baixa.
Mas rapidamente o mais velho, o meu enteado, desertou e só ficamos três.
Há poucos anos, ficaram só os dois velhotes: uma voltinha pelos Aliados onde não havia muito aperto e, por pressão da mulher (que eu bem o dispensava) ver o fogo de artifício à meia-noite e logo de seguida regressar a penates.
Nos dois ou três últimos anos nem saímos.
São sete e meia da manhã.
O meu filho, com vinte e três anos, acaba de chegar a casa.
- Oh pá! – falei-lhe daqui – Não precisas de fechar a porta à chave porque já estou levantado.
O mais velho, com quasi trinta e dois, já estava a dormir quando me pus a pé.
A mulher também ainda dorme. Ou está na sorna.
E eu estou a acabar de escrever mais umas memórias na esperança de que alguém leia isto daqui a uns anos.
E, de repente, comecei a chorar.
Bolas! Que se passa? Acho que estou mesmo a ficar um velho gagá!
Tenham um bom dia de S. João!
Afinal era a noite de S. João!
Pois adormeci e só acordei já passava das cinco da manhã.
Isto fez-me pensar em como o tempo passa e, muito mais depressa do que se possa pensar, estamos com os pés para a cova.
E recordei-me que a noite de S. João era sagrada para o meu pai.
Desde miúdo que me lembro dele e de minha mãe saírem, já tarde, pelas onze e tal, e só voltarem pelas quatro ou cinco da madrugada.
Eu e a minha irmã, mais nova dois anos, ficávamos em casa, claro.
Mas connosco ficava a avó paterna, a vovó Mimi, que para lá se mudava por uma noite e um dia para ficar a zelar pelos netos.
Passada essa fase inicial em que a noitada me era restringida, seguiu-se a fase de sair com os pais. Já não me recordo quando fui viver a minha primeira noite de S. João, mas deve ter sido por volta dos dez, doze anos.
Estou a falar da cidade do Porto, pois as festas deste santo popular são comemoradas em mil e uma cidades, vilas e aldeias por esse país fora.
Depois das minhas primeiras experiências como noctívago sanjoanino, não pude deixar de dar certa razão ao meu pai, bairrista como vi poucos, e que dizia ser esta festa única no mundo, pois não havia mais nada além de pessoas que, de facto, nada comemoravam. Gente que, sorridente, batia com o alho porro na cabeça dos outros.
Para quem nunca viveu esta experiência, isto pode parecer profundamente idiota.
Mas não é!
De facto, cria-se uma empatia tal entre todos, que este comportamento prosaico e bizarro se transforma, como que por milagre, num ritual de paz, harmonia, concórdia e verdadeira comunhão entre os homens.
Depois, lá pelas três, vinha o tempo de comer um arroz de cabrito na casa Casais, junto ao jardim de S. Lázaro, que era a tasca de preferência do meu pai (para este fim, bem entendido).
Lembro-me de o velhote ter um cliente e amigo em Cascais, pessoa de bem e com muito garbo, que foi convencido por ele a vir passar uma dessas noitadas ao Porto.
E lá vieram o Sr. Pereira e a sua mulher, a D. Hortênsia. Um pouco constrangidos, confessaram depois. Mas, após terem vivido essa noite, juraram que nunca haviam visto tal empatia entre as pessoas. E dai por diante e durante alguns anos, lá vinha o casal por aí acima para sentir e gozar a noitada de S. João.
Por voltas dos quinze, dezasseis anos, comecei a ir com os amigos. Primeiro era o bailarico dos bairros, ao fundo de Fernão de Magalhães e já perto do Campo 24 de Agosto, depois pelas ruas da baixa: Santa Catarina, Santo António, Clérigos, Mouzinho da Silveira para ir à Ribeira ou Alexandre Herculano para descer até às Fontaínhas. Nesses anos sessenta foi quando a populaça começou a procurar outros locais, nomeadamente a rotunda da Boavista.
Mas, muito rapidamente, e com a entrada no ensino superior, deixei o grupo de rapazes e passei a integrar um grupo de moços e moças, quasi todos estudantes, e lá fazíamos os nossos comboios para incómodo dos mais pacatos foliões.
Foi nessa altura que começou a ocorrer em força a substituição do tradicional alho porro pelo barulhento e chato martelinho de plástico.
Em má hora! Em má hora!
Depois foi a ausência por causa do serviço militar.
De regresso à terra natal, a noitada deixou de ser em grupos, mas com um ou dois amigos, ou amigas ou então com a namorada da ocasião.
Até que veio o casamento e os hábitos alteraram-se.
Nessa altura já os festeiros se espalhavam por várias zonas da cidade e eu e a minha mulher começamos a ir à Foz, juntamente com outros casais e respectivas proles, ao apartamento de um amigo e sua companheira para depois, em plena praia, deitar um fogo de artifício muito simples e largar balões que, na sua maior parte, caíam na areia ou no mar, um pouco adiante. Quando algum lograva subir era o gáudio da pequenada, e o orgulho dos autores do feito.
Mas esta fase passou.
Depois seguiu-se o período familiar.
Eu, a mulher e os dois rapazes voltamos a calcorrear as ruas da baixa.
Mas rapidamente o mais velho, o meu enteado, desertou e só ficamos três.
Há poucos anos, ficaram só os dois velhotes: uma voltinha pelos Aliados onde não havia muito aperto e, por pressão da mulher (que eu bem o dispensava) ver o fogo de artifício à meia-noite e logo de seguida regressar a penates.
Nos dois ou três últimos anos nem saímos.
São sete e meia da manhã.
O meu filho, com vinte e três anos, acaba de chegar a casa.
- Oh pá! – falei-lhe daqui – Não precisas de fechar a porta à chave porque já estou levantado.
O mais velho, com quasi trinta e dois, já estava a dormir quando me pus a pé.
A mulher também ainda dorme. Ou está na sorna.
E eu estou a acabar de escrever mais umas memórias na esperança de que alguém leia isto daqui a uns anos.
E, de repente, comecei a chorar.
Bolas! Que se passa? Acho que estou mesmo a ficar um velho gagá!
Tenham um bom dia de S. João!