Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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Localização: Maia, Porto, Portugal

quarta-feira, novembro 30, 2005

Cena da vida familiar

Homem, mulher e filha de sete anos.
O despertador toca, como de costume, às sete horas e trinta minutos.
Enquanto o pai se arranja, a mãe ajuda a mocinha e vai fazendo algumas pequenas tarefas domésticas.
Quando a filha e o marido estão prontos, saem junto, indo este levar a menina à escola.
Entretanto, e dentro da rotina habitual, a dona vai tomar um duche.
Repentinamente, a água deixa de cair.
- Rai's partam esta merda! Que chatice! – pragueja a senhora.
Durante os poucos minutos de silêncio em que se enxuga com um natural mau humor, ouve a campaínha da porta a tocar.
- Porra! Agora está gente a bater à porta! – resmunga, irritada, a mulher.
Embrulha-se no roupão e vai ver quem é:
- Sou eu!
E ouve a familiar voz do marido.
- Que aconteceu? – pergunta a mulher.
- Desculpa minha querida, mas esqueci-me das chaves cá em casa. Fartei-me de tocar à campainha e ninguém vinha abrir a porta. Calculei que estivesses a tomar o duche e, com o barulho da água corrente, não ouvisses o toque. Portanto, pareceu-me que a solução mais expedita, até para a menina não chegar tarde à escola, seria fechar esta torneira de entrada da água em casa. Acho que resultou! – explica pormenorizadamente o marido.
- Olha que tu hoje não me dirijas mais a palavra! – diz a esposa reprimindo o riso com dificuldade.
- Ó mamã! Estavas toda ensaboada quando a água faltou? – pergunta a miúda por entre risadas e saltinhos.

(cena que, de facto, aconteceu hoje no Porto)

sábado, novembro 26, 2005

No Olimpo (reedição)

É a primeira vez que faço uma reedição.
Em 06 de Março de 2005 publiquei um post intitulado “No Olimpo”.
Na altura, este blog tinha um mês e o texto foi comentado por apenas seis pessoas.
Sendo considerado por alguns (eu e o meu filho) como uma das minhas melhores criações, vou ter a grandessíssima lata de o publicar de novo.
Espero que vos agrade.


Após ter subido a íngreme e alta montanha, de ter passado a linha das nuvens, de estar a olhar para uma paisagem toda feita de algodão em rama, vi-me diante desse paraíso onde habitam mais de 3.000 deuses: o Olimpo.

Entrei seguro.
Apreciava com prazer as belezas cénicas que se me deparavam, quando começei a ouvir um som melodioso. Aproximei-me aos poucos e deparei com o famoso coro das nove musas dirigido por Apolo, irmão das meninas com voz de sereia. Cantavam o famoso tema Obladi-Obladá!
Mais à frente encontrei Deméter, a irmã de Zeus que é a deusa das terras cultivadas, a plantar uns belos pés de alface.
Pouco depois, num vinhedo, reconheci Dionísio, deus do vinho, a verificar o estado dos cachos. Tinha um cálice na mão e ía sorvendo um trago de quando em vez (não sei qual o seu conteúdo, presumo que não era cicuta).
Caminhei mais um pouco e olhei, bem de perto, Pan, o deus das pastagens, que ía cuidando de um rebanho de bem acolchoadas ovelhas. Tinha o ar concupiscente de quem não é grande admirador da lã virgem.
Atravessada a pastagem, encontrei um bosque onde corria um regato e, oh imagem perturbante, um número incontável de ninfas, seminuas, iam-se divertindo a correr, a esconder-se, a banhar-se na água cristalina. Aquilo pareceu-me muito mais o paraíso do que o que vira até então. Mas, azar o meu, logo depois estava em frente ao portão de entrada dos subterrâneos do Olimpo. Pensei em ir dar uma olhadela e saudar Hades, irmão de Zeus, que governava também o reino dos mortos. Mas Cérbero, o cão de três cabeças e cauda de serpente, que guardava o acesso a esse território, estava com cara, quero dizer, caras, aliás focinhos, pouco amistosos.
Dei meia volta e embrenhei-me novamente num bosque (sempre com as ninfas a correr e a saltar, coitadinhas das inocente, mas pensamentos muito lascivos me passavam pela cabecinha) até que fui dar a um mar interior.
Ali mandava Posídon, também irmão de Zeus, e sua mulher Anfitrite. E no mar estavam as cinquenta sedutoras e perturbantes filhas de Nereu, as Neréides, que se banhavam sem pudor nas serenas e divinas águas. Felizmente para mim, Posídon não decretara nenhuma tempestade para essa ocasião. Assim, pude deliciar-me a apreciar, com os olhos desorbitados e os dentes como ossos, as beldades a gozar as delícias do sol e do mar.
Contornei esse magnífico espelho azul e, finalmente, entrei na zona aristocrata do olímpico Éden.
Zeus, o rei dos deuses e dos homens, estava majestosa e helenicamente sentado no seu trono, ladeado pela bela esposa Hera. Esta já não era muito nova, mas conservava ainda os traços e a silhueta do que fora outrora uma belíssima jovem.
Perto estavam os filhos mais queridos: Artemisa, deusa da caça, mas também da lua e da noite (não me constou que tivesse alguma casa de strip-tease ou discoteca). Hermes, que protegia os comerciantes e os ladrões (que associação tão curiosa!). Atena, amasculinada, com um generoso buço no rosto e massas musculares de uma culturista, era a deusa da guerra e da indústria (pesada, creio). Ainda pude ver Hefesto, deus do fogo e da metalurgia, a supervisar a preparação de uma encomenda de não sei quantas espadas (daquelas longas e chatas como a de D. Afonso Henriques) para satisfazer sua irmã Atena. Ares, também deus da guerra e sócio da atlética mana, vigiava o controle de qualidade, dando umas espadeiradas por amostragem. A que guerra se destinaria esse armamento? Seria a uma guerra de alecrim e manjerona? À guerra dos sexos? Não descobri!
De repente, reparei na mais maravilhosa mulher que jamais vira!
Era Afrodite!
Sim, Afrodite, a deusa do amor e da beleza. A vontade de amá-la nasceu e muito depressa aumentou, aumentou...mas, como simples mortal, temia o que me pudesse acontecer se desse um passo em falso.
Reparei que faltava o mano Apolo, mas ainda devia estar com o coro das musas, a exibir o seu rosto imberbe e o seu corpo bem esculpido, gesticulando com uma doçura de mulher.
Mas eu continuava maravilhado!
No Olimpo!
E Afrodite ali tão perto!
Os meus pensamentos estavam cada vez mais descontrolados e prenhes de lascívia. Mas a ideia de poder ser obrigado a descer ao Tártaro, o lugar dos suplícios e das dores infinitas, o inferno do Olimpo, aplacava os meus ímpetos. Por outro lado, se caísse nas boas graças da filha de Zeus, talvez tivesse garantido um lugar eterno nos Campos Elíseos depois da morte. É o céu do Olimpo. A dúvida era um pouco angustiante, mas a sedução da bela deusa...
Triiiiim!!!! Tocou o despertador.
Maldição! Porque é que os sonhos acabam sempre?

quinta-feira, novembro 24, 2005

Este parte, aquele parte...

Este parte,
Aquele parte,
E todos, todos se vão...


Escolhi os primeiros versos do poema de Rosália de Castro que, musicado por José Niza e cantado por Adriano Correia de Oliveira, se tornou famoso em Portugal com o nome de “Cantar de emigração”, para título de posts que dedique a amigos que me vão deixando, numa viagem sem retorno.

Até ser eu a partir...

Soube, há dias, que tinha falecido o Quim Delgado (Joaquim de Sousa Delgado) vítima de um aneurisma cerebral.
Foi meu colega na escola primária do Bairro de Costa Cabral e morava mesmo, mesmo ao lado dela.

Era filho único e tinha, naturalmente, a minha idade.
Licenciou-se em Direito e, à altura da sua morte, exercia funções no Ministério da Justiça.
Sempre jovial e bem disposto, com uma piada requintada na ponta da língua, o Quim Delgado jamais será por mim esquecido.


Mas vocês também o conheceram!

Em 14 de Junho de 2005 postei um texto com o título:
“Vocação religiosa” em que o Padre Rocha tentou levar dois putos que tinham acabado de fazer a 4ª classe para o seminário.
Um deles era eu.
O outro, o Quim.

Viverás sempre na minha memória, velho amigo!

domingo, novembro 20, 2005

Sexta-feira, 18

Sexta-feira, 18 de Novembro de 2005.
Foi um dia intenso para mim. Por isso vou escrever sobre ele.

Fugindo ao paradigma habitual dos meus textos, este será como que uma folha de um diário.
A manhã estava bonita.
Cheguei ao trabalho ainda não eram oito horas, sendo a entrada às nove.
Este hábito de adormecer a ver o telejornal e acordar bem mais cedo do que o programado no despertador começa a aborrecer-me em relação à perda de informação. Mas não é nada que me incomode muito. Vou buscá-la a outras fontes.

Tinha uma consulta marcada no Centro de Saúde com o chamado médico de família (que por acaso é uma médica – será que atraio assim tanto as mulheres?).
Pura rotina!
Fez-me um exame convencional, conversamos sobre os meus problemas de saúde que, felizmente, não são muitos nem graves e requisitou um conjunto de análises e outros exames que complementarão mais um dos meus “check-up” anuais. Já os faço à mais de dez anos.
Eu sei que não sou imortal e também não pretendo ser o morto mais saudável do cemitério, mas gostaria de, enquanto por cá andar (e ainda poderão ser muitos anos) ter alguma qualidade de vida.

Depois, fui chamado a um dos chefes dos Recursos Humanos da empresa. Já estava à espera.
Propôs-me a passagem à situação de pré-reforma. Já o fizera há duas ou três semanas com dois colegas de trabalho ligeiramente mais velhos do que eu.
Se aceitar, no meu sector só ficará um colaborador com mais de cinquenta anos.
O governo quer (e eu percebo perfeitamente que não é suportável para o erário público reformar pessoas tão cedo) retardar as reformas. Mas duma maneira geral, os trabalhadores não querem trabalhar até aos 65 anos de idade e as empresas pretendem mandar embora os mais antigos.
Esta será, talvez, a grande oportunidade que tenho de evitar trabalhar até àquela idade. Mas serei penalizado no valor da reforma que me será atribuída.
Portanto, nos próximos dez ou quinze dias terei de me informar, calcular, meditar, conversar, negociar para, finalmente, decidir.
É um daqueles momentos cruciais na vida de um indivíduo. Sair da vida activa.
Decisões tomámo-las a cada momento. Mas há algumas que são especialmente marcantes e requerem uma reflexão especial. Esta é uma delas.

Estava a começar a escrever uma nova história de ficção. Vai ficar parada pois as prioridades alteraram-se.

“Wish me luck!”.

Para esse dia estava marcado um jantar com os dezoito ou vinte membros de uma sociedade de colegas de trabalho que aposta semanalmente no Euromilhões (confesso que me limito a pagar e nem sei qual a cor ou o aspecto dos boletins).
Como tem havido alguns proveitos, decidiu-se gastá-los numa mariscada.
Lá nos encontramos no Líder, sito perto das Antas, às vinte e trinta.
Eu não levei o meu carro. Fui no de um colega que não bebe álcool e fiquei, deste modo, mais livre para beber do magnífico verde branco que acompanhou o marisco.
Mas a viatura em que fui à boleia tem uma coisa que eu nunca tinha visto a funcionar: o sistema GPS. E lá fomos comandados por uma voz espanhola, de mulher (eu bem digo!) que nos ía dizendo:
“Agora à esquerda”
“Vire à direita a duzentos metros”
“Meta na segunda à direita!
E tudo com um completo mapa digital que mostrava as ruas todas, a posição do veículo e ainda o trajecto pré seleccionado pelo computado do automóvel.
E quando colocado noutro estado, no monitor íam aparecendo os nomes das ruas onde o carro estava. Mas que coisa porreira!
O jantar correu optimamente!
No final, que aconteceu já passava da meia-noite, surgiu a pergunta habitual:
- E para onde vamos, agora?
Uns foram para casa, outros não sei e, um grupo do qual eu fazia parte resolveu ir a um bar, com karaoke, que fica mesmo por cima do velho café ”A brasileira”.
Confesso que há muitos anos que não frequento este tipo de locais de diversão nocturna.
As minhas primeiras experiências foram pouco gratificantes pelo que deixaram de me interessar. Mas os membros do grupo eram quasi todos jovens (menos de quarenta anos, vários com menos de trinta), excepto eu e um dos tipos que vai para a pré-reforma.
E digo-vos que foi bem divertido.
O ambiente era agradável, o som não era estridente e portanto não incomodava, podendo mesmo conversar-se. Um dos colegas, desde sempre ligado ao canto e aos conjuntos, ainda cantou duas canções na maquineta, e eu fartei-me de abanar o capacete.
O certo é que só cheguei a casa por volta das três e meia da madrugada.
Mas houve um aspecto que me chamou particularmente a atenção: os colegas, homens ou mulheres, eram quasi todos casados e estavam ali numa boa com os cônjuges sossegadinhos em casa.
Não pude deixar de pensar que este tipo de comportamento, perfeitamente sadio, há uns vinte ou trinta anos atrás era impensável. Que se diria de uma senhora casada e mãe de filhos que ía fazer uma noitada com amigos e amigas sem o marido?
Para mim foi uma prova de que muitas coisas mudaram e que a igualdade de direitos entre homens e mulheres já não é só um slogan.
E também pensei que talvez seja este o caminho para os casamentos serem menos asfixiantes e, provavelmente, mais duradoiros.
Foi uma lição!
E já tenho mais informação para fazer uma das minhas “fabulosas” novelas com protagonistas mais novos.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Pelos caminhos de S. Tomé - parte II e última

A fama de que tirar a carta de condução em S. Tomé era mais fácil do que beber um copo de água já vinha de longe.
Logo nos primeiros dias da nossa estadia, toda a marujada sem carta de condução ou alguns que já a tinham mas pretendiam obter a de pesados ou a profissional, se dirigiu à Direcção de Viação da Província Ultramarina.
Eu, que não tinha carta, fiz o mesmo.
E aquilo era realmente muito simples; mais ou menos assim:
No primeiro dia metia-se a papelada, e tinha-se uma aula sobre o Código da Estrada.
No segundo fazia-se o exame de Código e tinha-se uma aula de condução.
No terceiro fazia-se o exame de condução e, passados mais dois ou três já estava na nossa mão o precioso documento.
Eu fiz o mesmo que os outros mas, aquando da prova prática de domínio da viatura, ía causando um ataque cardíaco ao examinador, que era um senhor de cor branca.
Arranquei com os pneus a plissarem, depois fiz umas manobras de estacionamento que iam provocando a queda de mais árvores do que um furacão de grau 5, e terminei em beleza com uma derrapagem na areia do pavimento, sendo que só a minha extraordinária perícia evitou que batesse num veículo estacionado junto ao passeio. O carro do exame ficou a uns 10 cm dele.
Mas o senhor branco, possivelmente por eu ser oficial, não simpatizou comigo e reprovou-me.
Julgo que fui o único branco em toda a história de S. Tomé que chumbou num exame de condução.
Já estou a ouvir os meus pacientes leitores a dizerem:
- E ele não tem vergonha de estar a escrever isto?
Claro que não tenho!
Antes pelo contrário!
Sempre gostei de marcar alguma diferença em relação aos outros e, por isso, até estou orgulhoso. O senhor branco é que tinha inveja de mim, tenho a certeza.
Alguns dias depois fui repetir o exame com o Sr. Américo, um simpatiquíssimo e barrigudo negro santomense que me fez dar um grande passeio pelos arredores da cidade (para eu poder apreciar as belezas paisagísticas daquela bonita zona da ilha) e, ao fim de uma boa meia hora de passeio, terminou o exame e elogiou muito a minha técnica serena de condução:
- Não percebo porque reprovaram o Sr. Tenente no primeiro exame. O senhor conduz muito bem – disse ele.
Portanto, e ao contrário da fama que tenho, fica agora bem demonstrada a minha vocação para o volante.
Se alguém tiver dúvidas, que venha dar uma passeata comigo.

A bordo do Rovuma, a chefia dos vários serviços era repartida pelo imediato e pelo 3º.
Eu tinha a meu cargo os Serviços de Navegação, Comunicações e Artilharia. Mas era o de Navegação o que mais ocupava o meu tempo. Uma das mais interessantes e nobres aplicações do meu “know-how” era feita numa operação que executávamos de quinze em quinze dias.
Tratava-se da captura de um saborosíssimo marisco, ao qual chamávamos caranguejos de Moçâmedes devido às semelhanças com os bichinhos tão apreciados em Angola.
Acontece que, para os apanhar, tínhamos de colocar um côvo com estrutura em vara de ferro soldado tapada por uma rede de arame e com as aberturas numa disposição cientificamente estudada.
O côvo tinha de ser lançado à água preso por um longo e resistente cabo. Quando se sentia que tinha pousado no fundo do mar, colocava-se um bidão pintado de vermelho preso ao cabo, a flutuar e, no dia seguinte, vínhamos ver os resultados da pescaria.
Mas qual a importância do meu papel?
Enorme!
Porque esses apetecidos crustáceos só se encontravam a uma profundidade de 350 a 400 m. Como já referi que a ilha era um enorme pico cónico de que só uma parte era visível, e com um acentuadíssimo declive, a distância na horizontal para que o côvo caísse no local certo era de uma dúzia de metros, e era eu que da ponte onde ficava a riscar as cartas de navegação e tirar uns azimutes gritava:
- Larga agora!
E o guincho do navio permitia que caixote e fio descessem o mais depressa possível para evitar que a ondulação e o vento afastassem o navio do local certo.
Era ou não crucial o meu desempenho?
Pois era!
Uma vez aquilo correu mal e, quando recolhemos a pescaria puxando o cabo preso à caixa com o guincho, em vez das dezenas dos animais pretendidos vieram só seis lavagantes.
Agora já devem estar a imaginar que, nos dias seguintes, as refeições eram só de caranguejos gigantes bem cozidos e temperados acompanhados por umas loiras cervejas, muito frescas.
Quando já estávamos cheios de saborear marisco, voltávamos à comida normal para desenjoar.
Só um aparte para dizer que o navio tinha, naturalmente umas arcas frigoríficas onde a bicharada era convenientemente conservada.

Já ouviram falar no brigadeiro Pires Veloso?
É um militar, actualmente aposentado ou qualquer coisa do género, tio do cantor, guitarrista e compositor Rui Veloso que foi enviado pelo MFA (Movimento das Forças Armadas, para os mais novos e menos informados destas coisas do PREC – e agora tenho de dizer que estas siglas significam Processo Revolucionário Em Curso) para S. Tomé e Príncipe como Alto-comissário.
No arquipélago nunca houvera a mínima acção de guerrilha ou contestação significativa ao colonialismo. As ilhas eram demasiado pequenas para permitir que tal acontecesse.
Só depois do 25 de Abril é que para lá foram alguns dirigentes do MLSTP (Movimento de Libertação de S. Tomé e Príncipe) que estavam em Livreville, no Gabão e começaram a haver alguns desacatos. Antes, só as rixas entre os santomenses, muito pobres e pouco dados ao trabalho e os imigrantes cabo-verdianos, mais trabalhadores e capazes.
Perante alguma insegurança que se começou a criar entre a população branca, também esta começou a manifestar-se.
Uma tarde, ainda Pires Veloso mal tinha aquecido o lugar, viu-se rodeado na rua por umas dezenas de colonos que lhe faziam as suas reivindicações.
Em determinado momento, uma mulher mais exaltada não esteve com meias medidas e pregou duas chapadas no Alto-comissário que seguramente as guardou como uma das suas melhores recordações da curta estadia por aquelas paragens africanas.

Durante o período de três meses em que estivemos naquelas paragens (com uma intermitência de 5 ou 6 dias para vir a Luanda buscar farinha para pão que havia esgotado nas ilhas) só fomos ao Príncipe duas ou três vezes.
A viagem demorava seis horas, se não me engano.
Ficávamos lá a dormir (aliás, durante todo o período de permanência em S. Tomé sempre todos dormimos no navio) e regressávamos no dia seguinte.
Quando constava que lá íamos, dezenas de pessoas vinham pedir-nos boleia e, assim, evitavam pagar a passagem num barco de carreira, entre as duas ilhas.
Normalmente aproveitávamos a viagem de ida para fazer uns exercícios de tiro com as duas Bofors de 70 mm, as metralhadoras pesadas que estavam implantadas no convés. Uma a vante e outra a ré.
A primeira viagem ainda foi feita sob o comando do Silva Dias.
Mas este terminou a sua comissão de serviço quando estávamos na ilha e foi substituído pelo comandante Nunes Ferreira que não tinha, nem de perto nem de longe, a “classe” do seu antecessor, mas era um sujeito muito simples e acessível. Aliás, a relação entre toda a gente foi sempre magnífica.
Mas voltemos à vaca fria.
Escrevia eu que na viagem para a pequena ilha do Príncipe atirávamos uns bidões à água e, como eu era o chefe do serviço de Artilharia, como já tive oportunidade de referir, colocava-me na ponte de onde dava as ordens de tiro.
Nunca tive oportunidade de ver, mas parece que os nossos passageiros se borravam de medo com os estrondos e a trepidação que abalava o navio.
Na rota para o Príncipe, passávamos junto ao ilhéu dos Pássaros, uma rocha que emergia achatada das águas e onde viviam e nidificavam várias espécies de aves.
Pouco depois começávamos a avistar a segunda ilha do arquipélago e, olhando um pouco para estibordo (que é como quem diz, para a direita) podíamos ver o ilhéu Caroço, mais conhecido por Boné do Jóquei, pois a sua silhueta era tal e qual um chapéu dos ditos.
Conforme nos aproximávamos do Príncipe, podíamos ver que era muito rochosa mas, de tal modo revestida de vegetação, que esta nascia mesmo nas mais estreitas fissuras das pedras.
O navio entrava na baía de Santo António ao fundo da qual ficava a cidade (de facto era tão pequena que lhe poderíamos chamar aldeia) de Santo António do Príncipe.
Como as águas eram muito pouco profundas, fundeávamos a alguma distância e depois vinha uma barcaça de fundo chato transportar-nos até terra.
Íamos saudar o capitão do pequeno destacamento do Exército que lá estava estacionado, que nos recebia na sua casa onde vivia com a mulher e uma jovem secretária. Juro que não quero ser má-língua mas, perante a forma como se olhavam e tratavam entre si, ficamos sempre com a impressão de que aquilo funcionava no estilo “ménage à trois”. Que Deus nos perdoe, se nos enganamos!
Tive a grata surpresa de lá encontrar o Zé Albuquerque, colega do curso de engenharia e que estava meio apanhado por tanto isolamento. Ele próprio o confessou.
De facto aquilo era uma pasmaceira total. E como não havia estradas transitáveis fora da cidade, só praticando montanhismo se podia ir a outros pontos da ilha.
Visita imprescindível era aos tartarugueiros, artesãos que faziam interessantes peças a partir da carapaça de tartaruga. Ainda guardo algumas.
E o regresso era sempre saudado por todos nós, efusivamente.
A beleza natural não é tudo, especialmente quando se tem vinte e poucos anos.

E assim termino este conjunto de historietas, narrativas ou descrições a que dei o título de “Pelos caminhos de S. Tomé”.

domingo, novembro 13, 2005

Pelos caminhos de S. Tomé - parte I

No primeiro dia de Julho de 1974, largou de Luanda, rumo à ilha de S. Tomé, o Rovuma,
Era um navio patrulha, fabricado nos estaleiros do Alfeite, lançado à água em 1969 e abatido ao efectivo da Armada em 1999. Viveu 30 anos mas fartou-se de viajar.
Tinha uma guarnição de pouco mais de 30 homens, sendo só três os oficiais: O Comandante José Manuel Silva Dias, elitista e "bon vivant", casado com a bela francesa Jacqueline.
O Imediato Fernando Ribeiro e Castro, jovem oficial do quadro, filho do Governador-Geral de Angola em funções no 25 de Abril e casado com uma jovem chamada Leonor que ficara grávida em Luanda. O primogénito nasceu quando ele estava em S. Tomé, pelo que teve direito a uns dias de férias junto da família.
Finalmente, o terceiro oficial, sub-tenente António Castilho Dias, o único miliciano, solteiro e bom rapaz.

A viagem foi feita à velocidade de cruzeiro de 18 nós e durou 45 horas.
Foi a primeira vez que muitos dos membros da tripulação experimentaram navegação oceânica naquele navio que, pelas suas características e missão, fazia normalmente navegação costeira.
E era ver a malta enjoada!
Alguns passaram o tempo agarrados a um balde onde lançavam a carga ao mar. Melhor dizendo, ao balde.
Mas, diga-se em abono da verdade, que alguns aguentaram sempre como verdadeiros lobos do mar. Sem um vómito ou um momento de fraqueza. Um deles era o barbudo terceiro oficial. Outro era um grumete transmontano, de seu nome Pedreiro, e um dos elementos mais castiços da tripulação. E era também o que tinha menos tempo de Marinha.
Portanto, foi o escolhido pelo comandante para ser a vítima de uma velha tradição da Armada portuguesa.
Assim, como pouco antes de chegarmos à baía de Ana Chaves onde fica o porto da cidade de S. Tomé, passaríamos a linha de latitude zero, a linha do Equador, o Silva Dias chamou o Pedreiro e disse-lhe:
- Ó pá! Estamos prestes a passar a linha do Equador. E para não ficarmos presos nela, tu levas esta tesoura, vais para a proa do navio e, quando vires a linha...zás! Corta-la! Entendido?
- Sim, senhor comandante – respondeu, meio desconfiado, o grumete.
- Então pega na tesoura e vai já para a proa. Põe-te mesmo juntinho da flâmula. E não tenhas medo de apanhar com água. O mais importante é evitar um acidente com o navio – disse muito sério o Silva Dias ao mesmo tempo que lhe entregava o instrumento cortante.
E o rapaz desceu da ponte para o convés de vante. Mas ele, que era parolo mas não era tolo, foi reparando nos camaradas (é a palavra usada para designar os outros militares – não tem nada a ver com política), quasi todos ali com sorrisos estranhos, para assistirem ao corte da famosa linha. Como a ondulação tinha uns dois metros, sempre que a proa baixava caía forte “chuva” sobre o convés. E o nosso bom Pedreiro, já encharcado, recuava estrategicamente a cada molhadela e, assim, foi retardando a chegada à proa, apesar dos incitamentos do resto da rapaziada.
Em determinado momento, já tínhamos passado o Equador e, como era preciso fazer as manobras de entrada na baía e atracação subsequente, o comandante chamou toda a gente aos seus lugares.
E dizia triunfante o grumete no seu sotaque transmontano:
- Queriam-me foder mas não me foderam! Ora toma! – e, todo molhadinho, dava gargalhadas e fazia manguitos.

Se olharmos para um mapa, vemos que a ilha de S. Tomé tem uma forma arredondada, mas alongada numa direcção próxima da norte – sul (mais rigorosamente nordeste – sudoeste). O comprimento total em planta ronda os 45 km e a largura os 30. Mas a característica mais notória é a de ser a parte terminal de um enorme pico que começa nas profundezas do oceano e se ergue, imponente, 2024 m acima do nível médio das águas do mar.
Na época, a sua população era de aproximadamente 65.000 habitantes (na ilha do Príncipe havia cerca de 5.000 pessoas)
A cerca de 3 km do extremo sul da ilha há um ilhéu, chamado das Rolas ou de Gago Coutinho, que é atravessado pelo Equador. Numa das tardes em que andávamos a dar voltinhas à ilha em missão de fiscalização, nele desembarcamos e fomos ver a marcação feita sob as indicações do famoso almirante. E eu, como os outros, não deixei de abrir as pernas (salvo seja!) e de pôr uma no hemisfério norte e outra no sul. Quanto mais não fosse serviu para mais tarde contar aos amigos.

Uma tarde, nós, os três oficiais, resolvemos ir de carro por uma estrada que conduzia até uma estalagem que ficava na encosta do pico.
Calculamos que estivesse mais frio nesse local devido à altitude, coisa que não acontecia cá em baixo, no sopé, pois aí a temperatura era quente, embora suportável, e fomos agasalhados.
Quando saímos do carro lá em cima, na Pousada Salazar a 800 m de altitude, o frio era tanto que tomamos um café e ao fim de cinco minutos já estávamos de novo dentro da viatura para regressar à cidade.
Eis como a pouquíssimos quilómetros do Equador se pode apanhar um frio de rachar.

A ilha, coberta de frondosa vegetação, é de uma beleza magnificente, tendo algumas paisagens deslumbrantes. Vista do mar, quando navegávamos pertinho da costa, podíamos vislumbrar uns traços doirados. Eram as praias, pequenas e estreitas, invariavelmente com os coqueiros debruçados sobre a areia. Quantas vezes não deixamos e navio e fomos até uma delas apanhar um côco, quebrá-lo e beber o seu saboroso leite, nadar, dar uns toques numa bola, ou simplesmente ficar ali a olhar, a olhar...
O clima, naquela altura do ano era moderadamente quente, pelo que se passou todo o tempo sem excessos climáticos.
O Silva Dias travou conhecimento com o Sr. Fangueiro, o responsável (também sócio, se não me engano) de uma pequena roça chamada Praia das Conchas e que dispunha de uma praia privativa para onde nós, os oficiais, fomos algumas vezes. Era a praia das Conchas, exactamente. As suas águas eram tão cristalinas que mergulhávamos nelas e podíamos apreciar uma enorme variedade de pequenos peixes tropicais a menos de um metro da superfície.

Estivemos em S. Tomé, cerca de três meses. Quasi todas as manhãs saíamos de Ana Chaves e regressávamos ao fim da tarde. Como o Rovuma ficava atracado (encostado ao cais e preso por cabos) e não fundeado (preso ao fundo do mar pelo ferro – a famosa âncora) era preciso alguém que estivesse em terra durante a manobra de atracação e na largada do navio. Quem fazia esse papel era um funcionário santomense que, sozinho, corria a prender ou retirar os cabos dos quatro cabeços, que são aquelas saliências em ferro que todos já viram quando estiveram num cais.
E não posso deixar de contar aqui o que me foi narrado por um colega do liceu, que seguiu a carreira de oficial da Marinha e que, numa altura em que era membro da tripulação da Sagres, fez uma visita a Leninegrado (S. Petersburgo) na U.R.S.S.:
Quando lá chegaram e estavam a atracar, verificou espantado que, junto de cada um dos quatro cabeços estavam dois marinheiros e um sargento e havia ainda um oficial a comandar a tropa toda. Portanto, um total de treze homens.

Assim percebe-se porque não havia desemprego na União Soviética, mas também porque deu o estouro que deu.

Quando se escreve sobre o S. Tomé colonial é inevitável dizer umas palavras sobre as roças. É sabido que o cacau era (e penso que ainda é, apesar de ter sido descoberto petróleo que vai ser repartido com a Nigéria, salvo erro) praticamente a única produção da ilha. Outras produções em quantidades apreciáveis, que me lembre, só a de cerveja, na única unidade industrial que por lá conheci.
Uma das roças que visitamos, e que era também uma das maiores, chamava-se Água Izé e pertencia ao antigo grupo CUF, dos irmãos Mello e que, depois de nacionalizado em 1975, originou a Quimigal.
O que mais chamou a minha atenção foi o sistema de economia fechada em que lá, e eventualmente noutras roças grandes, os trabalhadores viviam.
Tinham o seu salário, mas depois deixavam lá quasi tudo o que tinham necessidade de despender, pois na roça dormiam, comiam, compravam alimentos secos e molhados, roupas, tinham escola, cinema, enfim...o dinheiro dos homens e mulheres que não era economizado regressava aos cofres dos proprietários.
Aquando dessa visita, os três fomos recebidos principescamente pelo responsável pela unidade de produção agrícola e sua esposa.
Durante o almoço para o qual fomos convidados, o serviço de mesa era prestado por uma casal de negros, vestido a rigor com trajes típicos, estando mesmo descalços.
Terminada a refeição, e como mandam as regras da etiqueta, os anfitriões levantaram-se e dirigiram-se para uma sala ao lado onde seria servido o café; postaram-se na porta de transição. O Silva Dias, como frequentador da “high society” que era, foi o primeiro a levantar-se, dirigiu-se ao casal, agradeceu a refeição, beijou a mão da senhora e apertou a do cavalheiro. Eu fiquei aterrado! Nunca tinha beijado a mão de uma senhora (nestas circunstâncias, bem entendido) e fiquei sem saber se dava a beijoca ou não. Vai o Fernando a seguir e pespega outro beija-mão. Eu, o mais rústico de todos, acabei por cumprimentar a senhora com um passou bem.
Que diabo! O 25 de Abril tinha sido três meses antes e era preciso começar a fazer a revolução. Foi assim que eu dei o meu contributo!

Quando chegamos a S. Tomé, o comandante, ao verificar que eu tinha uma máquina fotográfica do tempo da Maria Cachucha, convenceu-me a comprar uma mais moderna.
- Ó Tenente! Esta ilha tem tanta beleza que você vai tirar muitas fotografias e deve ter uma máquina como deve ser.
Simpaticamente foi comigo a uma loja onde comprei uma Canon Canonete QL17 que era uma máquina muito jeitosa, de facto, e que usei durante décadas. Ainda a tenho, embora agora raramente seja utilizada. Também me convenceu a comprar uns rolos de slides em vez de fotografias tradicionais. Segui o seu conselho e acabei fazendo bastante uso dela. O pior foi que, quando cheguei a Luanda, tive de mandar os rolos para a Alemanha para serem convenientemente tratados. Muito tempo depois recebi-os todos negros. Não se aproveitou um único slide.
Fiquei como o pano da paixão e, ainda hoje, não sei qual a causa de tão infausto acontecimento.
Azares!

quinta-feira, novembro 10, 2005

Reencontro - parte VIII e última

Aquela maldita carta tinha tirado todo o sossego a Joaquim Gonçalves.
Não podia estar descansado sem saber o que se passava na realidade.
Mas quem o poderia ajudar? Cátia? A rapariga era sabida e não morria de amores pela dona, sendo certo que o contrário também era verdadeiro. E pensou:
- A Cátia é capaz de descobrir para onde Anabela vai quando sai daqui. Pode segui-la. Claro que eu também posso, mas não me agrada a ideia de deixar a moça aqui só. E será que posso confiar nela? Que é que ela tem a ganhar? Posso dar-lhe algum dinheiro. Será recompensa suficiente? Ora! Depende da quantia. E que mais pode ela lucrar? Espera! Como dizia a carta?
E abriu-a novamente para confirmar.
- Exactamente! Devia escolher outra mulher para sua esposa diz aqui. Por isso só pode ser uma mulher que esteja interessada em que eu e a Anabela nos separemos e, de seguida, vir ocupar o lugar dela. Será por amor? Acho mais provável que seja por interesse. E, nesse caso, poderia ser uma rapariga nova. Porque não a Cátia? Tenho de agir de forma que ela não desconfie que é suspeita de ter escrito a carta anónima.
E continuou a sua elucubração:
- E que tem a rapariga a perder se eu lhe pedir para espiar a Anabela? Pode ser que a Anabela descubra e a tente despedir ou fazer-lhe a vida negra. Pois...é isso. E durante as manhãs? A empregada vai todos os dias. Também pode saber alguma coisa. Conhece a Cátia. Pode ser que se abra com ela. Ai, ai, Meu Deus! O que havia de me acontecer!
E o bom Joaquim, com os olhos marejados, lá foi atender outra cliente. Era o melhor lenitivo para as suas dores.
Acabado o atendimento, fechou a porta e foi comer uma refeição. Abundante, para poder alimentar o seu peso que Anabela constantemente dizia que lhe ficava mal e fazia ainda pior à saúde.
Estava a almoçar quando lhe ocorreu uma ideia.
- Não! Isto foi escrito por alguma despeitada que quer tramar a minha Anabela. O que vou fazer em primeiro lugar é mostrar a carta à minha mulher. Não é correcto mandar espiá-la ou coscuvilhar o que anda a fazer sem primeiro falar com ela.

Às duas horas chegou Cátia. Procurou descobrir alguma coisa de estranho no seu comportamento, mas nada de especial notou. No entanto, conforme o tempo passava, pareceu-lhe que a rapariga olhava para ele mais do que o costume. Sorriu-lhe. Ela fez um sorriso como nunca lhe havia feito.
- Hum...esta tipa é que escreveu a carta – pensou.
E, aproximando-se dela, perguntou-lhe:
- Então Cátia! Quando é que te casas? Já tens 28 anos, não é?
- É, senhor Joaquim. Mas só me caso quando estiver disponível o homem que eu quero para marido – disse a moça.
- Quando estiver disponível? Quer dizer que já há um eleito pelo teu coração? – perguntou curioso.
- Já! Mas é casado! – atirou descaradamente a rapariga.
- Isso é que é pior! Como vais resolver o problema? – continuou ele a sondagem que tanto estava a resultar.
- Hei-de resolvê-lo! – disse ela enfaticamente.
- E eu conheço-o? – perguntou intencionalmente o Quim.
- Conhece muito bem! Mas agora não lhe digo quem é – travou, finalmente, a rapariga.
- Eu não te disse para mo dizeres – sorriu o homem.
Entraram três senhoras.
- Cátia, atende tu! Eu já vou ajudar, se for preciso.
E o Gonçalves pensou com os seus botões:
- Esta gaja é estuporada! Quer apanhar o velho e, para isso, não hesita em escrever aquela carta incriminando a minha mulher. Que raça ela tem! Mas será verdade ou mentira?
E o Joaquim continuou angustiado a tentar ordenar as ideias.
Passado pouco tempo chegou Anabela.
Sentiu uma vontade enorme de lhe contar tudo mas o momento não era oportuno. Não podia ser com a empregada por perto.
Ao fim da tarde a mulher iria novamente a casa para tratar do jantar dos filhos. Podia ir com ela. Não! Não podia ser no carro nem com os filhos em casa.
Como a Cátia saía às onze da noite, o melhor seria quando ficassem os dois sozinhos. Sem dúvida.
E assim fez.
Ou melhor, não fez porque não teve coragem.
Foram para casa e tudo decorreu normalmente.
- Tu hoje estás muito calado, Quim – disse a mulher.
- Achas? Estou um pouco cansado.
- Sentes-te bem? – perguntou Anabela afagando-lhe o pouco cabelo.
- Sinto! Vou dormir – disse, enquanto pensava que dormir sobre um problema é bom para clarificar as ideias.
Passado algum tempo Anabela foi para o quarto.
O marido já dormia profundamente. Acendeu a luz e reparou numa carta dobrada que estava no chão. Era a mesma que tinha alertado o Quim. Quando este despira as calças caiu de dentro do bolso e ele não dera por nada.
Anabela desdobrou-a, leu o envelope, retirou o papel que estava no interior e leu-o.
- Meu Deus! Ele viu isto! Terá acreditado? Mas que descaramento! Isto foi uma mulher. E agora? Que faço? – pensou ela com o coração bem apertado.
Apagou a luz e voltou para a sala. Sentou-se. Releu o papel.
- Amanhã tenho de dizer ao Paulo que temos de parar. E que faço com isto? Por isso o Quim estava um pouco estranho. Mas quem escreveu isto? Alguém que nos conhece. Que andou a espiar-me. Que quer a nossa separação para lucrar com ela. Deixa-me pensar: quem poderá ser? Alguma vizinha? Alguém do Shopping? A empregada? A Cátia? Falo sobre isto ao Joaquim? Deito fora? Que chatice! – elucubrou ela.

E a angústia levou-a a tomar um comprimido para dormir.
Voltou ao quarto e pôs a carta em cima da cómoda. Depois tentou adormecer, o que só conseguiu passado bastante tempo.
Na manhã seguinte Anabela levantou-se para ajudar os filhos a preparar-se. Quando voltou ao quarto estava o marido sentado na beira da cama com o maldito papel na mão. Era o que ela esperava.
- Quim! – disse – ontem à noite encontrei este papel no chão. Tu já o tinhas lido, não tinhas?
- Já! – respondeu ele – é verdade o que aqui diz?
- Mas tu acreditas no que escreve uma pessoa sem carácter que se esconde no anonimato? Alguém quer estragar o nosso casamento. Tens ideia de quem foi? – adiantou-se ela.
- Penso seriamente que foi a Cátia!
- A sério? E porque desconfias dela? Que é uma mulher é bem claro, mas porquê ela?
E Joaquim contou-lhe a conversa que tivera na tarde anterior no estabelecimento com a empregada.
- Quer dizer! Ela anda a ver se te apanha esperando ocupar o meu lugar. Mas que velhaca! – e Anabela mostrou uma irritação que raramente patenteava.
- Acho que é isso! – concordou o Joaquim Gonçalves.
- É preciso falar com ela! Falas tu ou eu? – e a mulher aproveitou para que a conversa não fosse cair no teor da carta.
- Eu falo! – disse o homem.
- E que lhe vais dizer?
- Perguntar-lhe o que a levou a escrever isto – respondeu.
- E a confessar que mentiu sobre mim – indica ela.
- Anabela! Mesmo que isto que está aqui dito fosse verdade, eu amo-te tanto que te perdoaria. Desde que tu terminasses essa relação – disse o bom do Joaquim com as lágrimas a escorrerem-lhe pela face.
- Meu querido maridinho! Podes acreditar em mim. Não se passou nada – mentiu ela.
Joaquim arranjou-se e foi para a loja.
Anabela ficou em casa e, passada uma meia hora, telefonou para a empregada da loja.
- Estou?
- Cátia? É Anabela! Só lhe quero dizer que, se você insiste naquilo que escreveu numa cartinha a meu respeito, eu vou direitinha à polícia informar que você usa drogas ilícitas, conhece traficantes e se prostitui.
- Mas...
- Não há mas nem meio mas! – continuou a patroa – o meu marido vai falar consigo quando você chegar à loja. Diga-lhe que inventou tudo para poder casar com ele e ter uma vida melhor. Estamos entendidas?
- Está bem, D. Anabela! – disse a moça com voz sumida. Eu não digo nada e a senhora também não.
- Ora ainda bem que nos entendemos! E, para que saiba, eu nunca traí o meu marido.
- Está bem, D. Anabela!
- Bom dia! – e a amante de Paulo desligou.
Paulo habitualmente telefonava durante a manhã mas nesse dia não o fez. Às vezes distraía-se com os alunos ou com os colegas e falhava.
Por volta das duas e meia da tarde, mais cedo que o habitual, Anabela chegou ao Ramos Gonçalves & Irmã.
Encontrou um Joaquim risonho que se lhe dirigiu e beijou, dizendo:
- Sabes que eu cheguei a acreditar naquela carta? Mas a Cátia já confessou que é tudo mentira e que pretendia casar comigo para poder ter uma vida melhor. Como me sinto aliviado.
- Tu sabes que eu era incapaz de te trair. Tenho por ti uma estima e um respeito que tu bem conheces – retorquiu a triunfadora do dia.
Olhou para Cátia e disse:
- A minha vontade era pô-la na rua! Mas não o faço por respeito à estima que a família do meu marido tinha pela sua mãe. Mas espero que tenha aprendido a lição – e virando-se para o seu homem – é assim que vais fazer, não é Quim?
- Claro! Se for essa a tua vontade!
- Obrigado, amor! Agora vou ali tomar um café para descontrair. Queres vir, Quim?
- Agora não posso. Vai tu, vai.

No dia seguinte de manhã, era perto do meio-dia quando o celular de Anabela tocou:
- Está?
- Olá! Tudo bem? – perguntou Paulo.
- Não, meu amor! A Cátia descobriu que nos encontrávamos e escreveu uma carta anónima ao Quim, a dizer-lho.
- Meu Deus! E agora? – disse ele, perturbado.
- Agora vamos ter de parar com os nossos encontros – decidiu a mulher.
- Claro! Mas conta-me tudo – pediu ele.
E Anabela narrou o que se passara no dia anterior.
- Tu foste brilhante! Estás uma verdadeira mestra a resolver situações complicadas – elogiou ele.
- É verdade! – e Anabela riu-se, satisfeita, mas depois mudou para o habitual tom doce da sua voz – meu amor, vou ter de desligar.
- Obrigado por estes dez ou onze meses. Foram dos mais bonitos da minha vida. E assim, dezassete anos depois, separámo-nos novamente. Parece que estamos condenados a viver de encontros e reencontros. Um beijo muito, muito grande para ti – despediu-se o homem.
- Para ti também, meu amor! Até sempre!

E Anabela desligou o telefone.

segunda-feira, novembro 07, 2005

Reencontro - parte VII

Paulo, logo na quinta-feira telefonou a Anabela para lhe explicar o local onde teriam os seus encontros amorosos clandestinos.
Durante muitas manhãs passavam largos minutos ao telefone a conversar sobre tudo e nada.
No sábado não se encontraram pessoalmente no Shopping, mas Paulo foi ler o jornal para o banco em frente da loja Ramos Gonçalves.
Em casa, o amuo de Inês terminara. A mulher removera o cinto de castidade e Paulo estava muito mais simpático com ela.
Pensara muitas vezes porque razão a situação conjugal descambara para um estado de degradação tão acentuado. Atribuía a causa desse estado ao facto de a mulher tudo querer controlar. Já não amava Inês mas esta não lhe era indiferente.
Agora, como tipo experiente, sabia que a melhor maneira de afastar desconfianças era ser gentil, dar-lhe mais liberdade para comandar a família, ter gestos de simpatia como levar umas flores ou uma guloseima para casa, convidá-la para sair e, sobretudo, ter relações sexuais com alguma frequência.
Assim, pensava, a probabilidade de ela desconfiar que tinha uma amante diminuía drasticamente.
Resultaria? Desde que não cometesse erros grosseiros, tinha a certeza que sim.

Quarta-feira.
O encontro fora aprazado para as três e meia da tarde.
Ao lado da residencial, aliás com um bom aspecto, havia uma rampa por onde podiam descer as viaturas que assim estacionavam nas traseiras.
E as pessoas que queriam preservar a privacidade entravam pela porta dos fundos, passavam áreas privadas como a cozinha e iam à recepção.
Paulo foi o primeiro a chegar.
Arrumou o carro no aparcamento do fim da descida, subiu a rampa a pé e colocou-se no passeio oposto para ver a sua ex-namorada e amante chegar.
Ela demorou pouco mais de cinco minutos.
Pareceu hesitar, mas o professor voltou para junto da rampa, fez-lhe um sinal com o indicador da mão direita para o seguir e voltou a descer para o parque.
O velho Peugeot 106 seguiu-o.
Pouco depois estavam junto da recepção e Anabela não largava a mão de Paulo para se sentir mais segura. Não era a primeira vez que estava numa pensão com aquele homem, mas era-o depois de casar.
Ele já lá estivera num dia anterior a falar com a moça da recepção e, perante a necessidade de deixarem os nomes e o número do Bilhete de Identidade no Livro de Registos, haviam combinado escrever outros nomes que habitualmente não usavam.
Ele assinou Jorge Branco e ela, a tremer, escreveu Ana Bela Teixeira. Depois, a rapariga escreveu os algarismos dos bilhetes de identidade com um deles alterado. Claro que isto implicava uma gorjeta, mas era preciso ter todas as cautelas!
Depois de cumprido este ritual, foi-lhes dado a escolher o quarto que pretendiam. Anabela optou pelo maior que ficava voltado para as traseiras e com o sol a bater-lhe de chapa.
A empregada saiu, Paulo fechou a porta à chave, baixou as persianas para reduzir muito a luminosidade dentro do compartimento, encostou as vidraças, inspeccionou o quarto de banho e, finalmente disse para a amante:
- Anabela! Estás bem?
Esta inspeccionava o local simplesmente com o olhar.
- Ufa...o meu coração está muito acelerado.
- Chega-te para mim. Já vais ficar calma – disse ele.
E apertaram-se num abraço e num beijo que demorou até ao ponto de fadiga.
Não era um encontro fortuito qualquer. Era o reencontro total após um afastamento de dezasseis anos.
Paulo começou a despir-se.
Fê-lo rapidamente e deitou-se na cama, nu.
A erecção era bem evidente e Anabela, mesmo antes de tirar toda a roupa, deitou-se sobre o homem para sentir aquele corpo que tanto a excitava.
As carícias, as palavras cheias de ternura, os “amo-te”, os “adoro-te”, os “quero-te”, os “meu amor”, os "aperta-me", os "toca-me", sucediam-se.
Os jogos amorosos, mesmo os menos ortodoxos foram jogados.
Paulo, com aquela mulher, ficava num estado de excitação quasi irreversível. Nunca houvera outra que lhe provocasse tal efeito. Muitas vezes bastava tocar-lhe ou ser tocado na mão para ficar erecto.
- Mas como consegues tu manter esse corpo de garça, Anabela? Tens 43 anos e dois filhos – perguntou ele espantado com a esbelteza da mulher.
- Sabes que sempre fui magra e tenho umas maminhas pequenas. E como pouco. E ando o mais que posso a pé – explicou ela – mas tu também estás que pareces um rapaz novo. E continuas a ser o homem que eu adoro!
Paulo riu-se, vaidoso.
E a sessão prosseguiu sem tabus. Eram quasi cinco horas quando Paulo lhe perguntou se não havia problemas em continuar ali.
Ela deu um gritinho e correu para o quarto de banho:
- Ai meu Deus! Tenho de ir. Para a próxima vimos mais cedo – disse ela.
Paulo levantou-se para abrir um pouco mais as persianas e assim apreciar melhor como estava o corpo de Anabela. Pois nem sinais de celulite, nem varizes, nem barriga.
- Tu continuas a parecer uma top-model – disse.
- Não exageres – comentou ela, sorrindo de orgulho, enquanto se secava.
- Agora vou eu aí – Paulo entrou no compartimento da higiene e, ao roçá-la, não se conteve e beijou-a e abraçou-a novamente com uma carga de desejo insuperável.
E voltaram para a cama.
- Que se lixe! O Quim é boa pessoa. Engole qualquer mentira bem aplicada – disse ela.
- Só espero que esta noite a minha mulher tenha sono.
Quando saíram dali já passava das cinco e meia.

Durante vários meses, quasi um ano, os encontros entre Paulo e Anabela sucederam-se com uma boa regularidade e sempre com a mesma fogosidade. Uma semana era um bom período para recarregar baterias. Nos períodos de férias havia uma interrupção que funcionava como acicate.
Mas o casal Paulo – Inês melhorou a sua relação de tal forma que, por vezes, pareciam ter voltado aos primeiros anos.
Até depois dos jantares com os amigos Paulo vinha mais cedo para casa. Desculpava-se junto do amigo Jorge com o trabalho e o Champagne-Club foi perdendo dois clientes.
Várias vezes a professora dizia ao marido que queria sair com ele às quartas à tarde. O encontro tinha de ser adiado mas ele nunca mostrava má cara.
A certa altura, os dois amantes também começaram a encontrar-se aos sábados de manhã para compensar as falhas. Era mais rápido mas nem por isso menos voluptuoso.
O casal Joaquim – Anabela também acabou por funcionar melhor. A mulher, seguramente com alguns remorsos da traição, tratava-o muito bem. Esforçava-se mais na ajuda dentro da loja e servia algumas sessões de sexo ao marido que o faziam adorá-la como a melhor mulher do mundo.
Certa vez, Anabela teve um atraso menstrual.
Coincidiu com um dos encontros com Paulo e ela falou-lhe na ansiedade que estava a sentir.
- E se eu ficar grávida? – disse ela.
- Já não era a primeira vez – gracejou o homem, mas depressa acrescentou – uma de mim e duas do Quim.
- Não brinques. Agora não sei quem é o pai – e mostrou alguma decepção.
- Se isso acontecer, o pai legal só pode ser o teu marido. O pai biológico determina-se facilmente com um exame de ADN – acalmou ele.
- Para ti é fácil. Mas para mim é mais complicado. Primeiro teria de decidir se tinha a criança ou abortava. Espero que não seja nada – procurou tranquilizar-se Anabela.
- Não deve ser. Vais ver que não é nada – procurou Paulo sossegá-la.
E não era. Passados dois ou três dias as regras apareceram.

Um dia, quando pela manhã Joaquim Gonçalves abriu a porta do estabelecimento, encontrou uma carta caída mesmo na entrada. Parecia ter sido introduzida manualmente por baixo da porta. Meteu-a no bolso mas, mal teve oportunidade, abriu-a e leu o seguinte, escrito em computador, tal como o envelope:

Sr. Joaquim Gonçalves
Alguém que gosta muito de si quer avisá-lo que a sua esposa o trai com outro homem.
O senhor é muito boa pessoa e não merece que lhe façam isso.
Devia escolher outra mulher para sua esposa.
Alguém que lhe quer bem.


Quim ficou atordoado. Primeiro achou que se tratava de uma brincadeira de mau gosto. Mas depois ficou na dúvida.
Releu a denúncia.
Achou que aquilo fora escrito por uma mulher.
E uma mulher que se insinuava perante ele de forma clara.
Não conhecia muitas. Quem seria?
Que iria fazer?
Mas sentiu-se triste, muito triste.
Ele sabia que Anabela não o amava com a mesma intensidade que ele. Muito longe disso. Mas ele dera-lhe aquilo que podia e não fora assim tão pouco: amor, filhos, segurança, casa, bem-estar. Não poderia estar a traí-lo. E, para mais, no último ano ela parecia estar mais próxima, mais amiga, mais provocante para com ele. Não! Aquilo era uma falsidade. Alguém que queria destruir a sua felicidade e a de Anabela.
Que iria fazer? Perguntou-se de novo.
A entrada de uma cliente fê-lo afastar-se dos tormentosos pensamentos e voltar a concentrar-se no trabalho.

sexta-feira, novembro 04, 2005

Reencontro - parte VI

Antes de adormecer, Paulo pensou quando poderia telefonar à amiga reencontrada. Imaginou que talvez ela ficasse em casa de manhã e só fosse para a loja da parte da tarde. Portanto, o melhor seria telefonar durante esse período, tanto mais que os filhos deveriam estar na escola.
E assim fez!
Por volta das onze horas de segunda-feira ligou para o número que ela lhe entregara.
- Está? – perguntou a mulher do comerciante.
- Sou eu, Paulo!
- Já reconheci a tua voz – disse ela.
- Estás bem?
- Estou óptima. Dormi lindamente. – respondeu a mulher de Joaquim.
- Eu também.
- Mas eu tomei um comprimido – e riu-se, a filha da costureira.
- Olha, Anabela, gostava de conversar contigo pessoalmente. Pode ser? – perguntou Paulo.
- Claro! – concordou ela.
- E sugeres algum local?
- No Shopping, mas da parte da tarde. De manhã estou em casa – alvitrou Anabela.
- Eu dou aulas em duas escolas. Não tenho muito tempo disponível. Que dizes na quarta-feira por volta das três? – sugeriu ele.
- Por mim está bem. Mas não me quero expor. Na zona dos cafés está sempre gente conhecida – referiu ela, cuidadosa.
- E se fosse na FNAC?
- É boa ideia! – concordou Anabela.
- Então está combinado. Sabes que fiquei muito contente por te ver de novo? Estás mais linda do que nunca! – lisonjeou-a o homem.
- Tu estás na mesma. Sempre bonito, elegante, e com essa voz maravilhosa. Ah...se eu aparecer um pouco mais tarde é porque há clientela para atender – recordou ela.
- Ok! Eu passo pela loja e vejo o ambiente. Assim já posso calcular se vais demorar muito ou pouco. – disse Paulo.
- Agora vou sair para comprar umas coisas. Conheço tão bem esta zona que sei onde posso comprar mais barato e melhor que no hiper. Um beijo. Até sempre! – despediu-se ela.
- Um beijo para ti, também. Até quarta! – disse ele.
E desligaram os celulares.

Joaquim Ramos Gonçalves, o marido de Anabela Barbosa, era um homem com 55 anos mas, embora tivesse uma estatura não muito baixa para a sua geração, 1,68 m, os seus 80 kg de peso, o cabelo já bastante branco e uma calva bem nítida, faziam-no parecer mais velho.
Quim, como lhe chamava a mulher, era mais velho doze anos que Anabela e, desde novo que sentia uma atracção pela jovem que passava muitas vezes pela loja dos seus pais e, algumas outras, entrava para ver as roupas de senhora. Quasi nada comprava, pois o seu objectivo era olhar o que lá estava para depois, de memória, desenhar algumas peças e permitir que a mãe as pudesse sugerir às clientes e confeccioná-las.
Um grave acidente de automóvel durante um passeio domingueiro roubou-lhe os pais quando tinha 32 anos. A partir daí passou a ser o responsável pelo negócio, embora tivesse como sócia uma irmã que vivia em França.
Mais de uma vez fizera tentativas de conquistar a moça mas esta ainda estava à espera do seu príncipe encantado.
Só após a ruptura com Paulo, e perante uma surpreendente e incisiva investida do tímido comerciante, resolveu aceitar o namoro daquele pacato homem. Ele tinha já 40 anos. No ano seguinte, casaram. Os filhos Sara e Marco nasceram um e três anos depois, respectivamente.
Tem agora 13 e 11 anos, portanto.
Há 3 anos vendeu o velho estabelecimento de rua situado perto do Carvalhido e alugou um razoável espaço no Norte Shopping.
Com o produto da venda adquiriu um apartamento novo, ainda nessa zona de que ambos tanto gostavam e onde haviam nascido.


Cátia Lopes, a jovem roliça e ousada empregada, com 27 anos, 1,58 m de altura e 60 kg de peso, era de origem humilde.
A sua mãe fora empregada doméstica em casa dos pais de Joaquim, o que lhe abriu as portas para aquele emprego. Desenrascada e eficaz como funcionária, também assim o era na vida privada. Não tinha um namorado. Antes saltitava de um para outro com a facilidade de uma borboleta mudando de flor. Tinha um carrito em segunda mão e um tipo de vida bem acima do que o magro ordenado que recebia lhe poderia permitir. Vivia com a mãe num bairro camarário de renda económica.

Na quarta-feira seguinte Paulo estava ansioso pelo encontro com a antiga namorada. Finalmente iria saber a verdade. Anabela talvez lhe colocasse algumas questões embaraçosas mas tinha as respostas preparadas.
O homem raramente usava perfumes para além do after-shave matinal mas, desta vez, pegou discretamente num frasquinho que meteu ao bolso. Não era prudente aromatizar-se dentro de casa.
- Até logo! – disse à mulher.
- Até logo! Hoje estás mais apressado – notou ela.
- Vou passar pela secretaria da escola – mentiu – e já são duas e meia. Não é propriamente cedo.
- Vens tarde? – perguntou ainda a mulher.
- Venho à hora habitual às quartas – respondeu ele.
E saiu, com vontade de ir aos saltinhos como o filho.
Nas tardes desse dia da semana aproveitava o facto de não ter aulas para ir dar umas voltas, tratar de assuntos pessoais ou da família, comprar ou simplesmente ver roupas e outros artigos que lhe interessassem. Era a folga semanal, enfim!
Depois de ter subido ao Centro Comercial, passou em frente da loja do Joaquim Ramos Gonçalves em passo de caracol e viu que não havia clientes. Dentro da loja só estavam os donos e a empregada. Como faltavam dez minutos para as três, dirigiu-se para a FNAC, deu uma olhadela pelos discos, discretamente colocou um pouco do líquido do frasquinho e dirigiu-se para a zona de cafetaria. Momentos depois chegou Anabela.
Limitaram-se a uma saudação verbal, tomaram um café e foram-se sentar.
- És feliz, Anabela? – atacou logo o homem.
Ela fez aquele sorriso ingénuo que lhe era tão peculiar e respondeu:
- Adoro os meus filhos! São a coisa mais importante da minha vida.
- É natural! Eu também adoro o meu – disse ele – mas, quanto ao casamento?
- É um casamento triste. Ele ama-me e eu deixo-me amar – respondeu ela. Mas logo de seguida perguntou – e o teu?
- Correu bem durante os primeiros anos. Depois a relação começou a degradar-se e hoje está quasi morta.
- E se é assim porque não te divorcias? – disparou ela.
- Bom! Tenho o meu filho e uma vida estável. Só se houvesse alguém que me interessasse muito estaria disposto a encarar essa hipótese a sério – justificou o homem.
- Eu também não estou muito disponível para o divórcio. Provavelmente ficaria com os meus filhos, mas foi o Quim quem me proporcionou quasi tudo o que tenho na vida. Seria muito cruel para ele se o abandonasse – explicou a mulher.
- Diz-me uma coisa! Porque escreveste aquilo naquele papelinho? – avançou Paulo.
- Porque é verdade! É a ti que eu amo. O Quim é para mim um amigo muito querido, mas que nem sexualmente me satisfaz – disse Anabela deixando o professor com vontade de a convidar para irem já para a cama.
- Agora diz-me uma coisa: há dezasseis anos, quando me rejeitaste, foi por tua iniciativa ou foi a tua mãe quem te pressionou? – procurou ele descobrir o enigma.
- Eu adorava a minha mãe. Ela era a minha mestra e a minha conselheira. Mas o que passou, passou. Não interessa mexer no passado – tentou ela acabar com o tema.
- Mas diz-me ao menos se estavas mesmo grávida e se fizeste um aborto naquela segunda feira em que eu queria falar contigo – insistiu o homem.
- Claro que estava grávida e abortei nesse dia. Mas já te disse que isso é passado. Agora interessa-me que estamos aqui frente a frente e eu te amo como sempre te amei – declara-se descaradamente Anabela.
- Estás disposta a encontrar-te comigo para nos amarmos? – perguntou ele.
- Mais que disposta. É isso que quero fazer – revelou ela deixando Paulo um pouco atrapalhado.
- Também eu! – disse ele – e onde? E quando?
- Disseste que tens pouco tempo disponível pois dás aulas em dois colégios. Eu não posso durante as manhãs porque tenho muito que fazer em casa. Depois de almoço venho para aqui. O Quim vem para cá por volta das dez e fica para almoçar. Temos uma empregada, a Cátia, que entra às duas e eu entro de tarde a horas variáveis conforme o horário dos meus filhos – esclareceu Anabela.
- Eu só tenho livres as tardes de quarta-feira. E nem todas porque às vezes há reuniões. Aos fins-de-semana não posso. Talvez ao sábado de manhã mas o tempo disponível é curto – explica o homem – e onde te queres encontrar comigo?
- Então tem de ser às quartas à tarde. Quanto ao local, escolhe tu uma pensão jeitosa e afastada. Eu tenho carro. Podemos ir ao Porto, por exemplo. Eu digo que vou ao médico ou outra coisa qualquer. Eu sei tratar bem dessa parte – disse ela, resolutamente.
- E posso telefonar-te à vontade? – perguntou ele.
- De manhã, sim! Se houver algum problema eu faço de conta que foi engano. Não quero que os meus filhos nem o Quim desconfiem de nada. Nem a empregada que está lá das nove às onze – esclarece a falsa ingénua.
- E aos sábados de manhã? Eu venho aqui quasi sempre. Podíamos encontrar-nos aqui e conversar – entusiasmou-se o homem.
- Vamos indo e vamos vendo! – respondeu ela.
- Então, um dia destes, telefono-te a combinar a hora e o local – disse Paulo.
- É pena não ser agora – lamentou-se Anabela tocando-lhe as partes genitais – até já estavas preparado!
E riram-se os dois.
- Olha! A tua mãe já faleceu há muito? – perguntou ele
- Há dez anos. Tinha setenta e cinco anos. Problemas do coração.
- Lamento! Os meus ainda estou vivos e as minha irmãs estão bem – disse ele.
E a conversa prolongou-se durante mais de meia hora. Mas foi um diálogo centrado na família e nos filhos, principalmente.
- Vou-me embora. Disse que ía ao cabeleireiro – disse ela.
- Mas não vão notar que não foste? – questionou o Paulo.
- Claro! E eu digo que me fartei de esperar e que depois fui a outro – e Anabela riu-se.
- Estás mais sabida! – disse ele
- É natural, não é? – e riu-se com um gozo que se podia ler também nos olhos.
Despediram-se novamente só por palavras e ela saiu.
Paulo passou novamente pela loja que estava com clientes.
Desceu para pegar no carro e foi para o Porto procurar pensões recatadas, com estacionamento privativo e aspecto asseado.
Foi a três que conhecia há anos e optou por uma na baixa, junto ao Silo-Auto.
Regressou a casa mais cedo que de costume.
- Vieste cedo! – disse Inês.
- Olá! Vim. Já tinha feito o que pretendia. O Diogo já chegou? – disse Paulo.
- Já! Está no quarto a estudar – respondeu a mulher cujo amuo parecia estar a passsar.
- Vou dar-lhe um beijo! – e o pai saiu da sala.
- Parece que me cheira a um perfume que não conheço! Hum... – disse para si mesma Inês.
Pouco depois Paulo passou pela sala e ela disse-lhe:
- Cheira-me a um perfume desconhecido!
- Ah...fui eu que comprei este frasquinho – desenvencilhou-se o professor – acho que faz jeito para andar no bolso e usar em caso de necessidade.
- É agradável o cheiro – disse ela – mas tens aqui alguns que nunca usas.
- Pois tenho! Mas os frascos pesam muito nos bolsos. Ainda bem que gostas – disse Paulo.
E foi ligar o computador.

terça-feira, novembro 01, 2005

Reencontro - parte V

Paulo subiu do parque de estacionamento até à zona comercial e procurou um painel onde pudesse ver onde ficava a loja de Anabela. Demorou alguns minutos até o descobrir.
Olhou em volta, orientou-se, e caminhou rapidamente para o local pretendido.
Quando viu o nome Ramos Gonçalves aproximou-se dos estabelecimentos, abrandou a passada e parou diante da primeira montra do pronto-a-vestir.
Olhou para dentro e viu um sujeito de cabelos brancos. Era, sem dúvida, o marido da ex-namorada. Viu também uma jovem baixa e rechonchuda, vestida de jeans muito justos e uma camisola de tecido fino e muito curta, que lhe deixava ver os contornos dos seios roliços, dos mamilos salientes e exibir uma parte da barriguinha, e ainda duas senhoras que pareciam ser clientes.
De Anabela, nem sombra. Talvez estivesse em casa com os filhos ou tivesse ido a um café, pensou.
Sentiu que já estava ali há alguns minutos, a expor-se excessivamente, e continuou o seu caminho até à loja seguinte. Parou de novo, olhou à volta e reparou que mesmo em frente à porta do Ramos Gonçalves havia um banco no meio do caminho dos passeantes. Dirigiu-se para ele e sentou-se virado para a loja. Resolveu esperar. Dava uma olhadela lá para dentro e depois varria com o olhar um ou outro lado do centro comercial. E foi repetindo estes movimentos da cabeça e dos olhos durante cerca de dez minutos. Já estava cansado desta cena de adolescente apaixonado e pensou:
- Acho que me vou embora. Virei cá noutra ocasião.
Eis que, vinda da zona privada da loja, surge Anabela. Esbelta, o ar sereno de sempre, o charme que tanto o excitava. Novamente o ritmo cardíaco acelerou.
Passados uns minutos, as senhoras dirigiram-se para a saída segurando alguns sacos com compras e acompanhadas pelo Gonçalves.
Quando este regressou ao interior, foi Anabela que veio postar-se à porta. Quasi de seguida os seus olhares cruzaram-se. Esboçaram um sorriso. Pouco depois a mulher voltou para dentro. Dirigiu-se a um balcão e escreveu qualquer coisa num papelinho. Falou para o marido e saiu. Paulo levantou-se e seguiu-a.
Quando ela chegou a um local onde havia uma reentrância com uma caixa Multibanco, parou. Ele parou junto dela. Sorriram abertamente um para o outro, olharam-se bem dentro dos olhos e ela disse:
- Guarda isto! Eu vou levantar dinheiro e é melhor tu ires andando.
E meteu-lhe na mão direita o tal papelinho, apertando-a com muita força. E foi para a janela da ATM.
Ele ficou absorto por momentos. Depois afastou-se um pouco, abriu o papel e leu:
Tu és o amor da minha vida
O meu tlm é o 96....

Paulo ficou estupefacto!
Não se deve ter mexido por uns minutos pois, quando a procurou novamente com o olhar, já ela lá não estava. Olhou em direcção à loja e ainda a viu afastar-se. Estava com o coração como que querendo saltar do peito.
Esperou uns momentos e encaminhou-se devagar para o parque onde deixara o carro e guiou o Honda Civic em direcção a Leça.
Chegado a casa, já eram quasi sete da tarde. Não lhe apetecia sair.
- Como aqui qualquer coisa – decidiu.
Ligou o televisor, sentou-se no sofá, fechou os olhos e exclamou em voz alta:
- As voltas que o raio da vida dá!
Levantou-se e foi preparar uma sandes de queijo que comeu com uma cerveja bem fresca. Depois comeu uma maçã e sentou-se novamente para ver o noticiário na TV.
Mas o pensamento fugiu-lhe para a imagem de Anabela, cada vez mais presente e com mais nitidez.
Levantou-se e foi preparar-se para dormir. Aquele sábado tinha sido emocionalmente muito intenso e desgastante. Deitou-se e voltado para o lado esquerdo na posição uterina, preparou-se para dormir.
Quando Inês e Diogo chegaram, Paulo dormia profundamente.
- Ó mamã! O papá já está a dormir – disse o rapazito.
- Já? E deixou o televisor ligado! – resmungou a mulher.
Pouco depois toda a família dormia.

Domingo amanheceu risonho.
Como de costume, os três foram almoçar a um restaurante não muito afastado.
O ambiente entre o casal continuou sendo de indiferença. Trocaram as palavras estritamente necessárias. Nem mais uma!
Depois da refeição Paulo conduziu o carro pela marginal, sobretudo para que o filho pudesse ver o mar e o rio de que tanto gostava.
Pouco depois estavam novamente em casa.
Paulo desta vez não ligou o televisor. Foi colocar um CD no leitor e carregou em “repeat”. Era uma colectânea de canções cantadas por Joe Cocker. Sentou-se no sofá, fumou um cigarro e começou a relembrar:

Quando chegou Agosto partiu com Mário, Jorge, Lucília e Manuela para o Algarve a fim de lá passarem duas semanas. Tinha pedido a Anabela para ir também, mas a jovem escusara-se, alegando que não podia deixar a mãe sozinha. Estava já com 69 anos e a saúde não era muita.
Logo no dia seguinte ao da chegada à zona balnear, Paulo reparou numa interessante rapariga com quem entabulou conversa com a descontracção a que já se habituara. Chamava-se Inês, era filha única e estava com os pais num apartamento muito próximo. Tinha 26 anos e também era do Porto.
A atracção entre os dois foi crescendo e a facilidade que Paulo tinha em conversar sobre vários assuntos e o seu natural poder de sedução fizeram-na esquecer o namorado anterior com quem rompera cerca de um ano atrás. Haviam sido três anos que acabaram em nada. Isso deixou-a muito transtornada apesar da sua força intrínseca.
O grupo de cinco passou a contar com mais um elemento.
A relação entre Paulo e Inês consolidou-se nesse período de convívio e trocaram uns beijos. Inês, conservadora, não permitiu os avanços tentados pelo jovem.
Quando chegou o dia de regresso, Inês partiu com os pais para um período de mais uma semana de visita a Évora e Lisboa.

Chegado ao Porto, Paulo, que ainda vivia com os pais, resolveu fazer aquilo que nunca fizera quando estava na zona mais ao sul de Portugal: telefonar a Anabela.
- Olá, Anabela! – disse – correu tudo bem contigo?
Mas a resposta foi dada com uma voz magoada, algo estranha, diferente.
- Preciso que venhas urgentemente a minha casa.
- Há algum problema? – perguntou o professor.
- Depois falamos. Quero que venhas cá o mais depressa possível – insistiu a jovem.
- Estás chateada comigo? Tens razão! Mas eu peço-te desculpa. Eu vou aí pedir-te desculpa.
- Anda. Podes vir agora ou vens logo, depois de jantar?
Paulo viu as horas e disse:
- São seis e meia. Não queres vir jantar comigo?
- Não! Já te disse que quero que venhas cá a casa.
- Deixas-me inquieto. Aconteceu alguma coisa com a tua mãe? – inquiriu o jovem.
- Não! Podes estar aqui às nove horas? – persistiu a rapariga.
- Pronto! Está bem! Estou aí às nove – decidiu ele.
- Então até logo! – disse ela e desligou.
- Que merda! Não lhe liguei nada enquanto estive lá em baixo e agora ela está fula! – pensou Paulo.
Logo após a refeição que comeu rapidamente, levou o carro ao Carvalhido e estacionou no local habitual.
Pouco depois Anabela saiu de casa e veio ter com ele, dizendo:
- Entra, por favor. Temos que conversar dentro de casa.
- Mas a tua mãe está lá! Ou não está? – perguntou.
- Está! Mas a minha mãe também quer falar contigo.
O moço ficou ainda mais intrigado.
- Mas que é que a velhota tem a ver com isto? Mau, mau... – pensou.
Contudo, perante a insistência da jovem que, a certa altura começou a chorar, saiu do carro e entrou na pequena casa.
A mãe, Arminda, estava sentada numa das cadeiras da sala.
Depois das saudações, Paulo sentou-se noutra cadeira à esquerda da senhora e Anabela em frente a ele. Era a primeira vez que ele entrava naquela pequena habitação.
- Senhor professor! – começou a velha costureira – quero dizer-lhe que este é uma assunto muito sério. A Anabela está grávida, e queria pedir-lhe que casasse com a minha filha, pois parece não haver dúvidas de que o senhor é o pai da criança.
Paulo ficou quasi em pânico!
Tinha-lhe passado quasi tudo pela cabeça, mas aquele cenário, não!
Calou-se enquanto pensava no que havia de responder. Finalmente disse:
- Minha senhora! De facto, a confirmar-se que a Anabela está grávida, serei eu o pai. Mas quando me pede para casar com ela, eu não lhe posso responder agora. Tenho de pensar no assunto.
- Mas é urgente que o senhor decida. Se gosta da minha filha, como parece, peço-lhe por tudo que case com ela – insistiu a dominadora mãe.
- Não posso decidir já. E se insiste, a minha resposta é não! – disse enfaticamente ele.
E se ambas as mulheres já estavam a choramingar, perante as palavras de Paulo começaram num pranto.
- Mas, senhor, se quiser podem vir viver para aqui durante os primeiros tempos até arranjarem uma casinha vossa – sugeriu Arminda.
- Não se trata disso, minha senhora. Mas não se decide um casamento assim, em poucos minutos, e num estado profundamente emocional – argumenta o jovem.
- Mas é preciso decidir hoje. Por favor! Não deixe a minha filha assim! Ela gosta muito de si! Por favor! Case com ela! – disse a mãe enquanto limpava as lágrimas que lhe escorriam face abaixo.
Anabela permanecia sem falar, mas chorava sempre.
- Peço desculpa, mas não decido agora! E não vale a pena insistir porque não mudo a minha opinião! – e Paulo endureceu o tom de voz.
- Peço-lhe que tenha pena da minha filha. Se gosta dela, case, por favor! – repetiu a pobre mulher desesperada.
Paulo levantou-se e disse:
- Vou-me embora! Amanhã falo a sós com a Anabela e depois tomarei uma decisão – afirmou de forma peremptória.
- Por favor! – repetiu mais uma vez a velha e dorida mãe.
- Boa noite! Até amanhã! – e Paulo dirigiu-se para a porta e saiu.
Mal entrou no carro deu três berros:
- Foda-se! Foda-se! Foda-se!
E depois, mais baixinho:
- Estou fodido!
E dirigiu-se ao café onde deveriam estar os amigos.
Só lá estava Jorge. Chamou-o à rua e, enquanto caminhavam, contou-lhe o sucedido.
- Ó pá! Estás fodido! – exclamou.
- Isso sei eu!
- Olha! Se fosse a ti ía dormir. Sabes que nestas ocasiões um bom sono faz clarificar as ideias.
- És capaz de ter razão! Mas não sei se consigo adormecer – disse Paulo.
Pouco depois apareceu Mário. E a narração de toda a cena foi repetida.
Caminharam para um lado e para outro perto do café, mas suficientemente longe para a conversa não ser escutada.
- E se ela não estiver grávida e tudo aquilo foi encenado para te apanhar? – disse o sempre imaginoso Jorge.
- Ó pá! Não brinques com coisas sérias – repreendeu o sensato Mário sem conseguir reprimir um sorriso.
Finalmente Paulo resolveu ir para casa e dormir. Ainda pensou em telefonar para o hotel de Évora onde estaria alojada Inês, mas não estava com muita vontade de falar com ela. A rapariga pertencia a outra história.
No dia seguinte, Paulo tentou telefonar para casa de Anabela. Fê-lo por diversas vezes mas ninguém atendeu. O mesmo aconteceu na terça-feira. Finalmente, na quarta, ouviu no outro extremo da linha a voz de Anabela ainda mais estranha e sumida.:
- Estou?
- Anabela! Que aconteceu? – disse Paulo.
E a resposta foi demolidora.
- Por favor, desaparece para sempre da minha vida! – e desligou..
Paulo ainda tentou contactá-la nesse e nos dias seguintes, mas nunca ninguém atendeu.
Que se passara?
Provavelmente teria ido abortar. Não o fez por ela, pensou, mas para agradar à velha mãe.
Mas porque não aceitou falar a sós com ele? Também poderia ter sido a mãe, sempre tutelar, a dizer-lhe para não o fazer.
Quanto tempo teria de gravidez? Seria assim tão urgente fazer o desmancho?
E se o Jorge tivesse razão? Teria tudo sido uma encenação?
E ele teria aceite casar?
Não sabia!
Mas agora também já não interessava.

Estava Paulo a recordar todo aquele período do seu passado quando ouviu Inês:
- Diogo! Lava as mãos e vem para a mesa.
O professor também se levantou, foi desligar o leitor que continuava a lançar para o ar a voz rouca de Cocker, lavou as mãos e sentou-se para um jantar à base de saladas e frutas. Comida leve e saudável. Boa para quem se queria deitar cedo para ir trabalhar na manhã seguinte.
E deitou-se pouco passava das dez da noite. Muito mais cedo que habitualmente.
Mas não adormeceu logo.