Eu sou louco!

Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças! (este blog está registado sob o nº 7675/2005 na IGAC - Inspecção Geral das Actividades Culturais)

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sexta-feira, dezembro 23, 2005

Um curso de inglês

O
Foi em 1977.
Ainda só havia dois canais de televisão em Portugal – os da Rádio Televisão Portuguesa – e nada de emissões a cores, quando começou a ser difundida a primeira telenovela.
Brasileira, uma produção da Globo, foi um estrondoso sucesso.
“Gabriela”, baseada no romance “Gabriela, cravo e canela” de Jorge Amado, era uma magnífica obra televisiva com personagens riquíssimas interpretadas por grandes actores.
Seguia todos os episódios atentamente e só razões inultrapassáveis me retiravam da frente do pequeno écran durante a sua transmissão.
Também nesse ano foi produzido um concurso semanal, inovador, que tinha elevadíssimos níveis de audiência: refiro-me a “A visita da Cornélia”.
Mas as telenovelas tinham vindo para ficar, como se pode constatar ligando hoje um televisor, nomeadamente no chamado horário nobre.
Ainda vi a segunda, bastante mais fraca, que se chamava “O casarão”.
Entretanto comecei a achar que estava a perder demasiado tempo a ver produtos de duvidosa qualidade e virei-me para outra actividade qualquer. Já não me lembro qual.
De vez em quando acompanhava uma ou outra, lembro-me da estupenda “O bem amado” em 1984 e de “O Roque Santeiro” em 1987.
Foi no final dos anos 80 ou no exórdio dos 90 que decidi afastar-me novamente da rotina entorpecedora das telenovelas.
E inscrevi-me num curso nocturno de inglês.
Eu era o mais velho da turma, mas a maioria dos meus colegas já andava pelos vinte e muitos ou trinta e tal anos. Também era o que melhor me entendia com aquele idioma, pelo que, descontraídamente, era o grande animador das aulas.
A professora, uma jovem inglesa franzina e aloirada, de nome Maria – isso mesmo, Maria – era uma boa professora e as aulas eram momentos de grande descontracção e aprendizagem.
No ano seguinte a turma manteve-se unida mas tínhamos um outro professor. O Richard era magnífico a ensinar e o clima de boa disposição manteve-se durante mais um ano lectivo. Num jantar que oferecemos ao “teacher” e a outra professora, que era a sua companheira, no final do ano, numa marisqueira em Matosinhos, o Richard fez, de improviso, um discurso em português praticamente sem erros e com um sotaque estupendo. Era um predestinado para a aprendizagem de línguas. Por cada país onde passava para leccionar, ao fim de um ano já tinha aprendido novo idioma.
No terceiro ano a equipa permaneceu junta, com a excepção da entrada da Susan, uma jovem britânica muito loira e com uns lindos olhos azuis, para o lugar do Richard. Foi a professora mais fraca, apesar da sua simpatia. Mas as aulas continuavam a ser um momento de prazer, convívio e aprendizagem.
Certa vez, tive uma ideia maluca e um tanto ousada.
Escrevi numa folha de papel A4 as palavras:

Prostitute
Male homosexual
Female homosexual
To make love
To make oral love
To make anal love
Penis
Vagina
Breasts
To defecate

E, antes de a entregar à Susan disse-lhe (em inglês, claro):
- Ó professora! Sabes que nós aqui aprendemos muita coisa. Mas quando estou a ver um filme, muitas vezes os actores usam uma linguagem muito vernácula e não percebo nada. O mesmo acontece com os outros alunos.
E entregando-lhe a folha previamente escrita, acrescentei:
- Por isso, gostava que colocasse à frente de cada palavra que aí está alguns significados mais "fortes".
A professora não se desmanchou e disse:
- Eu não sou muito conhecedora de palavras do tipo das que queres saber, mas vou pedir a ajuda de um colega.
E na aula seguinte entregou a cada aluno uma folha preenchida de forma ainda mais completa do que eu esperaria.
Vou transcrevê-la.
Espero que aprendam umas coisas de inglês com as “Useful Coloquial Expressions” (eufemismo para Swear words) que nos foram apresentadas. Faço notar que, ao escrever esta parte do texto, estou a copiar a velha folha que guardei religiosamente ao longo destes anos todos.

Prostitute – Hooker, Pro, Whore, Bitch, Slag (leviana, em português)
Male homosexual – Gay, Poof, Woofter, Fairy, Faggot, Queer (old expression)
Female homosexual – Lesbian, Dyke, Les
To make love – To have sex, To have it off, To bonk, To screw (strong), To fuck (strong), To shag (very strong)
To make oral love – To suck someone off, To give a blow job
To make anal love – Give it up the arse, To bugger (apanhar…)
Penis – Cock (strong), Willie (mild), Dick (strong), Knob, Prick
Vagina – Fanny, Cunt (very strong)
Breasts – Tits (medium), Boobs, Knockers, Jugs (mild), Melons (mild)
To defecate – To shit (strong), To pooh (for children), To go for a crap, To shite (strong), To drop your back (specific from Liverpool), To dump

To call a person

Mild – Bugger, Sod, Swine, Get, Cow, Twit
Strong – Bitch, Bastard, Twat, Pain the ass, Cunt, Wanker, Fuck, Tosspot (very strong)

To tell someone what to do

Mild – Bugger off, Get lost,
Strong – Fuck off, Piss off, Go fuck yourself, Fucking hell

Exclamations

Mild – Bollocks, Balls, Crap, Bloody hell, Damn, Fuck
Strong – Shit

Infelizmente, nesse ano todos chumbaram (já não me lembro porquê; talvez porque tenha havido alguma prova final), excepto eu e outro tipo.
E assim se desfez aquela turma fantástica.
No ano seguinte fomos ambos parar a uma turma de adolescentes de quinze e dezasseis anos. Faziam uma barulheira insuportável e falavam inglês bem demais.
Ao fim de duas ou três semanas desisti.
Gosto de fazer as coisas enquanto me dão gozo. Se deixam de me agradar, mais vale acabar (se tal for possível, como era o caso).
E assim, sem glória, acabou (quero dizer, não acabou) um curso de inglês.
Mas ainda hoje, quando encontro alguém dessa turma na rua ou em qualquer outro lugar, não podemos deixar de estar pelo menos cinco minutos a recordar aquelas aulas espectaculares.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Direito de Autor

Não sei se alguém reparou que, há alguns dias, a parte final do texto introdutório deste blog sofreu uma alteração.
Cerca de um mês depois de ter formalizado o pedido, recebi no passado dia 12 de Dezembro de 2005 uma carta da IGAC – Inspecção Geral das Actividades Culturais, organismo integrado no Ministério da Cultura, com o seguinte teor:

"Vimos, por este meio, comunicar a V. Exa. o deferimento do pedido de registo de Direito de Autor da obra abaixo indicada:
“EU SOU LOUCO! (BLOG)
Endereço:
http://eusoulouco.blogspot.com"

Espero, deste modo, ter os meus textos protegidos contra roubo ou plágio.
Não terão um valor por aí além, mas foram gerados pela minha imaginação, memória e trabalho, pelo que não me seria muito agradável vê-los publicados noutros locais sem a minha autorização.
Gostava de ter opiniões sobre a eficácia que este registo tem na protecção da obra (sinto-me um pouco esmagado por esta palavra – obra!), sobretudo de pessoas que tenham experiências positivas ou negativas nesta matéria.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Ano novo, vida nova

O 22 de Dezembro será o meu último dia na vida activa.
Aproveitando o Decreto-Lei nº 119/99, e após negociações com a empresa onde trabalhei nos últimos 23 anos, decidi passar a um estado de pré-reforma, durante o qual estarei adstrito ao Fundo de Desemprego durante 38 meses transitando posteriormente para a situação de reforma.
O facto de se prever que muito brevemente saia legislação que dificultará de forma muito acentuada a passagem ao estatuto de reformado antes dos 65 anos, contribuiu de forma decisiva para a minha decisão.
Esta mudança representa uma profunda alteração na minha vida.
Mas, não sendo propriamente um velho e gozar (pelo menos aparentemente) de boa saúde física e mental, obviamente que não vou passar os dias sentado num banco do jardim ou no café a apanhar sol ou a ler o jornal.
Como durante esta primeira fase não poderei ter actividade remunerada, depois de passado o período festivo que se aproxima, ou seja, no novo ano, começarei a pensar onde e como ocupar o meu tempo duma forma útil para a sociedade, de forma a não me sentir um parasita.
Não quis deixar de fazer esta comunicação (reparem no tom solene com que a faço) às pessoas que normalmente lêem os escritos que para aqui vou debitando.
Também é provável que incremente o tempo dedicado à escrita, bem como ao exercício físico, esperando, em anos não muito distantes, estar a candidatar-me ao prémio Nobel da Literatura e a uma medalha de ouro numas Olimpíadas.
É caso para dizer:
Ano novo, vida nova.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Quero ir para a prisão!

Pus a este blog o nome de “Eu sou louco!”.
Muitos de vós tem-me dito que não tenho nada de louco, que o nome é enganador, que o título não é adequado e feito outras afirmações que vão no mesmo sentido.
Ora eu, praticante antigo e dedicado da introspecção, sei que sou mesmo louco.
E vou-vos provar o que digo!
Uma das minhas grandes fantasias (e não estou a falar de fantasias sexuais) é viver na prisão.
Isso mesmo: estar preso, encarcerado, detido num estabelecimento prisional, ver o sol aos quadradinhos.
Não prisão de anos e anos, porque isso seria demasiado chato, mas durante uma meia dúzia de meses. Talvez um pouco mais.
É uma experiência que deve ser interessantíssima.
E tem algumas vantagens notáveis: sem pagar nada, tem-se cama, mesa e roupa lavada, como se costuma dizer (e ainda assistência médica).
Pode-se ler, escrever, caminhar ao ar livre no átrio, jogar futebol, conversar, dizer asneiras, aprender coisas sobre droga e o tráfico respectivo, verificar (mera observação, entenda-se) como é a homossexualidade nesses locais, tomar conhecimento de como assaltar carros e casas ou mesmo abrir cofres, apurar se é verdade que os bolos ofertados pelos familiares tem limas no seu interior e adquirir bons hábitos (há hora de deitar e hora de levantar).
E não é obrigatório ver televisão, andar de fato e gravata, tomar banho todos os dias, receber telefonemas, sms’s e e-mail’s a toda a hora e momento, andar na filas de trânsito, à chuva, ao sol, ao frio e ao vento, ouvir o chefe a dar ordens imbecis e muito mais que deixo à vossa imaginação.
Há um aspecto negativo: a falta de contacto com mulheres. Mas umas saídas precárias ajudam a ultrapassar esse problema.
Quando se é novo, essa privação é muito constrangedora mas, conforme a idade vai retirando algum vigor e entusiasmo, essa restrição torna-se mais suportável. E quando se é muito mais velho e as carências são mínimas, nem se pensa nisso.
Não é por acaso que alguns velhotes que não tem onde cair mortos se pelam por uma estadia como presidiários. E fazem um assalto ou outro pequeno crime só para poderem ir dentro e desfrutar de algum tempo com umas regalias mínimas de forma absolutamente gratuita. Uma vez cá fora, lá vem a fome, as dormidas ao relento ou em más condições de salubridade e todas as chatices que não tem dentro da prisão. Mais um crimezito e segue-se outro período de sossego e relativa fartura.

E como hei-de eu realizar essa fantasia?
Antes de raciocinar sobre o assunto, deixem-me dizer, como aparte, que navegar meses a fio num navio pode ser uma experiência um tanto semelhante, mas menos radical. Digo-o, embora nunca tenha experimentado nenhuma das duas situações. Por mero palpite.
Vou então tentar descobrir qual a melhor maneira de concretizar esse sonho: o que fazer para ir bater com os costados numa masmorra do nosso tempo?
Parece ser óbvia a resposta: cometer um crime.
Mas que tipo de crime?
O que primeiro me ocorre quando se fala em crime é o homicídio (deve ser por ter visto tantos filmes policiais e lido muitos livros da Aghata Christie). É certo que pode dar uma pena judicial muito grande e um tipo acabar por se chatear de estar lá dentro. Mas é uma hipótese a analisar melhor.
Homicídio!
Mas com que arma? Arma branca?
Não me agrada muito! Fica o chão sujo e as paredes salpicadas de vermelho. Não! É uma porcaria!
Salvo se a vítima tiver sangue azul. Então a cor das borradelas e dos salpicos deixaria de ser o vermelho cor de inferno e passaria a ser o azul cor de céu. E pegando numa pasta dentífrica branquinha, poderia fazer umas riscas brancas e até pareceria que estava no Estádio do Dragão em dia de jogo da bola.
Mas, digo-vos francamente que, quer seja sangue vermelho ou sangue azul, é solução suja que não me agrada. Adiante!
Violação também não!
Ía um tipo para a ala dos violadores e vejam bem o que poderia acontecer. Chiça!
Não! Definitivamente, não! É para esquecer!
E que tal envenenamento?
Com remédio do escaravelho?
Excesso de medicamentos?
Cogumelos?
Parece não ser má ideia. Mas quem pode ser a vítima? Só alguém com quem privemos diariamente para ser um trabalhinho progressivo. Complicado. Desisto!
Posso, no entanto, cometer um crime mais suave para estar menos tempo lá dentro.
Assalto e roubo. Até é possível graduar a pena. Se for à mão armada, dá mais tempo na choça. Sem arma na mão, menos. Acho que começo a chegar ao ponto. E se a vítima for uma velhinha indefesa, é canja!
Penso que já fiz a minha escolha: assalto com um canivete suíço a uma velhota.
Mas convém ser perto de uma esquadra da bófia para eles me deitarem logo a luva e assim já passar essa noite na prisa.
Entrar para lá assim, de supetão, deve ser muito mais emocionante.
E tem a vantagem de, se aparecerem uns malucos a tentar fazer justiça à moda de Fafe, haver logo ali, à mão de semear, quem me defenda.
Mas...
E se os monos fizerem de conta que não viram nada?
O melhor é mesmo fazer o assalto noutro local e depois ir entregar-me, esperando que eles não me mandem embora. Senão, andei eu a tentar fazer um trabalho esmerado, a assustar uma velhinha, com o risco de ela ter um ataque e ir parar à Sociedade dos Pés Juntos e Mãos Postas sita na Quinta das Placas e das Cruzes, para nada. E se a anciã morre com o susto vou preso por homicídio, o que não é o objectivo. Mas é preciso correr alguns riscos.
Continuando a detalhar a minha escolha:
Canivete suíço, já tenho!
Falta a velha!
Onde hei-de encontrar uma velha?
Ora! À porta de um lar da terceira idade. Nem mais!
Resumindo:
Vou assaltar uma velhinha perto de um lar da terceira idade, num local ermo e quando o sol já se tiver escondido ( ía-me esquecendo deste pormenor), com um canivete suíço e, logo de seguida vou-me entregar numa esquadra.

Depois vem o julgamento.
Confesso o crime, digo que não estou arrependido e, com um bocado de sorte, apanho um juiz mauzão que me manda para o xelindró por uma boa temporada. Aqui há outro risco: o juiz mandar-me em liberdade. Se isso acontecer, paciência. Volto à estaca zero.
Enquanto lá dentro, procurarei escrever muita coisa sobre a vida prisional que, naturalmente, quando estiver do lado de fora, verto para o blog. Melhor ainda: posso escrever um livro.
E como já fiz um filho e plantei uma árvore...
(não sei se enterrar um caroço de pêssego na terra de um jardim público conta como tendo plantado uma árvore; com um bocadinho de boa vontade, acho que sim)

Agora quero ver quem ousa dizer que o título “Eu sou louco!” não é o mais adequado!

quinta-feira, dezembro 08, 2005

A avó Joana

Adorava ouvir as histórias que a minha mãe e as suas três irmãs contavam dos meus antepassados.
E algumas das que mais gostava eram as do casal Luís de Brito e Joana.
Joana era a avó paterna da minha mãe.
Viveu no sec. XIX, em Segadães, juntinho da vila raiana de Valença do Minho.
Obviamente que eu nunca a conheci, nem mesmo nenhuma das quatro netas.
De aparência franzina, era uma verdadeira mulher eléctrica, com um potencial energético de 100.000 volts.
Ela e o marido eram proprietários de uma padaria e pastelaria.
E como já adivinharam, ela era quem punha e dispunha.
Ainda por cima, o Luís era a preguiça personificada. Bem mais corpulento que a mulher, pelava-se por não fazer nada. E, de facto, também não tinha muitas tarefas atribuídas. Primeiro, porque a Joana tratava de tudo e ainda tinha alguns criados que a ajudavam nas várias tarefas; segundo, porque não confiava no seu marido.
Talvez por não ser suficientemente solicitado, o Luís acabou por arranjar uma amante.
A coisa não durou muito: uma noite quando o homem chegou a casa encontrou umas malas com todos os seus pertences na rua.
E teve de pedir desculpas, de joelhos, com renovadas promessas de fidelidade conjugal, para poder voltar a entrar em casa. Mas, durante uns dias, viveu na habitação de uns parentes.
- Mas isso não é nada de especial! – dirão os leitores.
E tem razão. Ainda hoje esta é uma prática corrente. Mas serve para definir melhor as personalidades de cada um.
Era hábito da casa fazer o pagamento à maior parte dos fornecedores, que eram do Porto, no início de cada mês.
Pois quem ía a cavalo, lá de perto da fronteira até à Invicta, com um pistolão e uma saca cheia de dinheiro à cintura e dois criados para ajudar era ela mesma, a avó Joana.

Mas que têmpera!
Como toda a burguesia dos meios rurais, tinham os seus terrenos para cultivar uns produtos hortícolas, plantar umas árvores de fruto e ainda para a criação.
De vez em quando matavam um porco.


Eu tive a sorte de assistir a muitas matanças, tendo todos os rituais ainda gravados na minha memória.
Eram vários homens a lidar com o bicho. Deitavam-no numa tosca mas resistente mesa de madeira, de pés curtos, de modo a que o leito ficava a uns trinta centímetros do chão e longa, para o animal ali ficar estendido. Depois de convenientemente amarrado com fortes cordas e com os carrascos sentados em cima dele, o matador, num golpe certeiro, enfiava um facalhão directo ao coração. Morte rápida para minimizar o sofrimento do bicho e evitar uns abanões que atiravam toda a gente ao chão. Uma vez vi o porco a soltar-se e correr com a faca toda espetada no peito: o chefe da equipa falhara o alvo.
Depois, eram queimados os pêlos com palha a arder, lavada a pele com água, sabão e pedras com asperezas para fazer a barba ao corpo da besta o mais bem escanhoada possível, senão o toucinho ficaria com a couraça pouco lisa.
A seguir procedia-se à abertura do cadáver ao longo de toda a zona ventral, removiam-se as vísceras, que eram quasi totalmente aproveitadas e, finalmente, era pendurado pelas patas traseiras e com o interior cheio de ramos de loureiro para escorrer todo o sangue, durante uma noite.

Na manhã seguinte fazia-se o desmancho completo.

Mas voltemos à matança do suíno do casal.
Depois de cumpridos todos os passos que atrás descrevi, havia um criado que ficava de noite a guardar o reco, não fossem aparecer sorrateiros ladrões e levá-lo.
Mas, uma vez, não havia nenhum empregado que estivesse disponível e a patroa determinou que fosse o Luís a cumprir tal tarefa.
- Ó homem! – avisou várias vezes – tu abre-me bem esses olhos, ouviste? E não adormeças!
- Ó Joana! Eu sou responsável; sei muito bem o que tenho de fazer – procurava ele sossegá-la.
O certo é que, a meio da noite, a avó Joana acordou e achou por bem ir ver se o seu marido estava a cumprir a tarefa correctamente.
Quando chegou ao local, o porco estava intocado, mas o pobre do Luís não aguentara os ferozes ataques do João Pestana e dormia soltando um ronco de tempos a tempos.
E que fez a mulher? Acordou-o? Não!
Pegou num facalhão e cortou a cabeça do porco, escondendo-a em sítio seguro.
Quando o sol despontou, ela levantou-se e foi direitinha ao local. Lá estava o decapitado com o Luís ainda a dormir como um justo.
- Ó Luís! Acorda! Os ladrões levaram a cabeça do porco!
E continuou:
- Estás a ver? Não posso confiar em ti! Adormeceste em vez de tomar conta do bicho!
E o pobre do homem acordou estremunhado e olhava com cara de basbaque, ora para o pescoço sem cabeça ora para a mulher que se ria a bom rir.

Tiveram quatro filhos, dois rapazes e duas meninas.
Que conste, nunca mais houve ninguém como a Joana na família, mas o meu avô Abel e o primo Zé, ambos já falecidos, eram cópias bastante fiéis do avô Luís.

domingo, dezembro 04, 2005

Circo

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