A D. Maria da Conceição, operária reformada e viúva, vivia sozinha no terceiro andar de um velho prédio de uma das ruas tortuosas e estreitas da degradada zona histórica da cidade.
Tinha sessenta anos, era gorda e usava os cabelos, já quasi todos brancos, apanhados formando um puxo. Ficara sem o seu Manuel, companheiro de tantos anos, havia cinco. Com a sua reforma e a pensão de viuvez tinha o suficiente para ela.
Os três filhos, dois rapazes e uma rapariga, estavam todos casados.
Eles tinham ido para o estrangeiro e estavam bem na vida. Ainda lhe mandavam algum dinheirinho que lhe permitia fazer umas extravagâncias. Gostava sobretudo de ir ao cinema, mas também via telenovelas e filmes na TV, e ía numas excursões domingueiras de tempos a tempos.
A filha, mais nova, vivia perto dela e visitava-a uma ou duas vezes por semana.
Quando jovem, a São fora uma moça bonita e com um corpinho bem feito, mas o passar dos anos tinham feito dela uma mulher anafada e envelhecida, aparentando ter mais anos de vida do que o inscrito no Bilhete de Identidade.
Desde sempre fora muito coscuvilheira e, com o passar dos anos, esse hábito acabara tornando-se quasi um vício.
Muitas vezes, enquanto ía vendo as telenovelas preferidas, levantava-se para ir à janela da cozinha ver o que se passava na rua e, sobretudo, nas habitações dos vizinhos que moravam no prédio que ficava mesmo em frente ao dela. Era fácil ver e ouvir, tão curta era a distância.
Ao seu nível, portanto no terceiro andar, vivia a Sandrinha, cujos pais tinham morrido num desastre de automóvel. Tinha uns vinte e muitos anos e trabalhava nas limpezas. Mas a D. São podia apreciar que quasi todas as noites recebia uma ou duas visitas masculinas.
- Enfim! A vida está má e é preciso comer e vestir – costumava dizer à sua vizinha do lado, a D. Idalina, que vivia com o seu João, ambos reformados.
De cada apartamento dos que ela espiava, talvez inspirada no filme “A janela indiscreta” do Hitchcock, via duas janelas. Uma da cozinha e outra de um quarto. Os restantes compartimentos, ou não tinham luz directa ou davam para as traseiras.
Ao lado da Sandra vivia um casal de meia-idade com um filho ainda novo mas, dessa família Ferreira não conseguia recolher muitos elementos para depois contar às amigas ou guardar para si e fazer as suas elucubrações.
No segundo andar morava um homem, na casa dos trinta, que lá vivera com os avós e mais tarde com a mulher e um filho. Mas tanta pancada o Anselmo dera à Cristina e ao pequeno David que, poucos meses antes, ela debandara com o catraio deixando o homem a dar murros nas mesas e nas paredes quando estava mais bem bebido.
A São ainda chamou a polícia uma vez mas, na presença das autoridades, a mulher disse que não senhor, que ele era um bom marido e um bom pai. Perante essa atitude decidiu não mais “entre marido e mulher meter a colher”.
Ao lado vivia um sujeito que para lá fora há cerca de uma semana, depois da morte da velha Deolinda, uma senhora de provecta idade. Nem sequer sabia ao certo o nome do homem mas, como era alto e magro e vestia sempre de preto, ela alcunhou-o de Drácula.
No primeiro andar já não conseguia ver bem o que se passava, mas num lado vivia a sua parceira de mexericos, também viúva e reformada, a Nazaré, e no outro um casal de velhotes que, desde sempre, tinha sido muito recatado e não dava confiança aos vizinhos. Eram os Moreira que, de vez em quando íam passar uma temporada com um dos seus quatro filhos. Não precisavam daquela casa, mas não queriam deixá-la de tão baixa que era a renda.
No rés-do-chão havia um armazém que estava quasi sempre fechado.
A São, que tinha já dificuldade em descer as escadas de madeira e, sobretudo, em as subir, poucas vezes ía à rua. Três ou quatro saídas por semana para fazer compras. Mas vingava-se e falava com toda a gente procurando novidades e contando o que de novo tinha sabido.
Uma vez por mês ía ao cinema, normalmente com a vizinha Idalina e o João mas fazia questão de pagar os bilhetes e o lanche. Era uma espécie de recompensa pelas vezes que o homem, que se mexia bem, ía às compras e lhe trazia umas coisas que ela lhe pedia.
Uma noite, estava a velha solitária a cocar para dentro da casa do Drácula, e viu pela primeira vez uma jovenzinha, talvez com uns catorze anos.
Quem seria?
Era a altura de descobrir mais: quem era o Drácula?
No dia seguinte foi fazer umas compras e quando regressava viu a Nazaré a sair do prédio que ela, diligentemente, vigiava.
- Olá, vizinha! – saudou a Conceição – então como tem passado?
- Cá se vai andando! As dores nas costas é que dão cabo de mim. De resto, só tenho a tensão alta, o colesterol alto e a figadeira de vez em quando avaria. Para uma velha como eu bem que podia ser pior.
- Assim é que é falar, vizinha! Antes viva com doença do que morta com saúde. – e riu-se a São – Era o que dizia o meu defunto.
- Não me fale em defunto! O pior de todos os meus males é a falta que sinto do meu falecido homem – queixou-se a Nazaré.
- A quem o diz! A quem o diz! Isto sem o meu Manel não tem a mesma graça.
E emendou logo:
- Por falar em graça! Agora tem aí uma miudinha a viver na casa do Drácula. É filha dele?
- De quem? Ahh...do Sr. Azevedo...
- Veja lá como eu ando! O homem está cá há oito dias e eu nem sabia que se chamava Azevedo; por isso pus-lhe a alcunha de Drácula. Mas a miúda é filha dele? – insistiu.
- A Sandrinha disse-me que sim...
- Humm...a Sandrinha já anda a ver se arranja um novo cliente. Mas a rapariguinha não tem mãe? – perguntou a Conceição.
- Parece que a Vanessa...
- Ai a pequena chama-se Vanessa! Bonito nome, por acaso! E tem uns catorze anos, não? Mas continue. Eu estou sempre a interromper. Sabe o que é, lá em casa não tenho com quem falar e quando apanho alguém tenho de desenferrujar a língua. Mas conte! Conte!
A outra riu-se e recomeçou:
- Parece que a Vanessa vivia com a mãe, mas esta foi passar uma temporada para a cadeia, de forma que a mocinha veio para aqui com o pai. Ahh! Tem catorze, sim senhora! A vizinha tem boa pontaria! – e riu-se de novo.
- E ele faz o quê? – quis saber a viúva do terceiro andar.
- Não me diga que não sabe! Trabalha para um cangalheiro. É por isso que anda sempre de preto.
- Ahh...deve ser a farda! – e riu-se a São. Tenho de vir mais vezes à rua. Veja lá como eu ando desactualizada. E que é que fez a mãe?
- Isso não sei! Mas a Sandrinha pode descobrir.
- Claro! – corroborou a São – Mete-o na cama e o gajo cospe tudo cá para fora.
E riram-se ambas,
- Olhe vizinha! Quando souber novidades toque-me à campaínha que quando eu sair à rua venho aqui falar consigo. Agora vou para a parte mais difícil. Subir aquela porcaria de escadas que nunca mais acabam. E rangem todas! Qualquer dia vem tudo abaixo com o meu peso.
E soltou uma gargalhada.
- Adeus D. Nazaré!
- Adeus D. Sãozinha!
Passados dois dias apareceu lá em casa a filha, a Fátima. Era fim de tarde.
A conversa foi rápida. A mulher, com cerca de trinta anos, só queria mesmo saber como estava a velha e mostrou-se apressada:
- Hoje ainda vou fazer por aí umas visitas – avisou, justificando a pressa.
E, de facto, pouco depois saiu:
- Raios partam a rapariga! Sabia-me tão bem conversar um bocado e mal entrou pôs-se logo a bulir.
Quando, em certo momento, foi até à janela da cozinha, viu que a sua Fátima estava em casa do Anselmo com quem brincara em criança e chegara mesmo a namoriscar.
- Humm...afinal a pressa toda era para ir visitar o borrachão que batia na mulher e no filho. Espero que não avance muito com ele. Que se lembre que é casada e que o Francisco é muito bom homem – elucubrou.
Mas não tardou que aparecessem os dois no quarto e ele fosse apressado fechar as portadas da janela.
- Ai a filha da mãe que anda mesmo a pôr os cornos ao marido!
E continuou a pensar:
- Que descarada! A minha vontade era telefonar ao desgraçado para ele os apanhar em flagrante. Mas o melhor é falar com ela. Pode ser que o problema se resolva.
Cerca de meia hora depois viu a filha a sair do prédio.
Imediatamente lhe ligou para o telemóvel:
- Oh Fátima! Precisamos de falar urgentemente. Não podes vir cá acima agora?
- Oh mãe! Fica para outra vez. Estou atrasada e o Francisco hoje, apesar de vir mais tarde, já deve estar a chegar. Adeus. Beijinhos.
Nessa noite, sempre o mais escondida possível para não ser vista, observou que o Drácula Azevedo deitou a filha Vanessa na cama dele. Logo a seguir foi ele que se meteu debaixo dos lençóis. Mas logo se levantou para fechar as portadas da janela.
- Humm...a dormir com a filha de catorze anos? Isto não me está a cheirar nada bem!
No dia seguinte foi chamada pela Nazaré:
Aproveitou para ir comprar uns legumes e uma fruta e depois foi até à porta do prédio rigorosamente vigiado.
- Então, D. Nazaré! Que novidades é que tem? – perguntou.
- Já sei porque foi presa a mulher do Azevedo. Fez um assalto mais o gajo com quem andava. Foram os dois de cana e ela apanhou um ano e tal. A garota, que vivia com ela, foi entregue ao pai que arranjou aqui esta casa não muito cara.
- Muito me conta! Vamos lá ver como é que ele a trata! Não gosto da cara do tipo. Nada! Mesmo nada! – falou a São.
- A Sandrinha diz que ele parece antipático mas depois acaba por ser atraente.
- Ora! Para a Sandrinha quem lhe dá dinheiro é logo boa gente.
- A vizinha não perdoa nada! – comentou, rindo, a Nazaré.
- Olha! Vem ali a minha filha! Depois conversamos mais. Agora quero apanhar aquela! – e rangeu os dentes.
Chamou a filha e quasi que a obrigou a subir com ela ao terceiro andar.
- Então andas metida com aquele traste do Anselmo e pões os cornos a um homem a sério como o Francisco! Toma juízo rapariga! Acaba com isso depressa antes que se descubra tudo e te desgraces.
- Oh mãe! O Anselmo é o homem da minha vida. Sei que ele não é o melhor marido para mim, nem eu o quero. Só quero estar com ele às vezes. Leva-me às nuvens como o Chico nunca levou. E como só se vive uma vez, vou continuar a encontrar-me com ele – disse, de forma bem peremptória, a Fátima.
E continuaram a discutir mas a filha não cedeu!
Queria ser amante do Anselmo e pronto! Enquanto ele a quisesse estaria pronta para se lhe entregar.
Despediram-se com algum azedume que, naturalmente, se viria a dissipar no futuro.
- Toma cuidado, rapariga! – foi o último conselho da velha.
Agora, o que apoquentava a Conceição era o pai e a filha menor dormirem na mesma cama.
Foi espreitando noite após noite.
Mas o homem de preto tinha sempre o cuidado de fechar as portadas.
Foi reparando no ar triste da garota, que era bem bonitinha.
Até que uma noite mais quente, o sinistro Azevedo deixou a janela aberta e as suspeitas da São confirmaram-se.
Ele mantinha relações sexuais, provavelmente regulares, com a criança.
- Ah! Grande cabrão! Vou fazer queixa de ti! – pensou.
E no dia seguinte ligou para a Polícia Judiciária.
Contou o que sabia e o que tinha visto.
Entretanto não conseguira aguentar e, muito em segredo, dissera à amiga Nazaré o que descobrira. Nos dias seguintes ambas foram visitadas mais de uma vez por assistentes sociais. E outros vizinhos também.
Num final de manhã, passadas umas duas ou três semanas, estava a Maria da Conceição a cozinhar o almoço quando ouviu grande algazarra na rua.
Era a polícia que vinha buscar o Drácula e a filha.
E viu a Nazaré a insultar o vizinho caído em desgraça, arrastando na sua ira quasi toda a gente das redondezas. Nessa tarde não se falou noutra coisa e a São sentia-se orgulhosa do que fizera.
Quando, mais tarde, foi chamada ao tribunal, ficou a saber que não era crime o pai ter relações com a filha, mas que certamente seria condenado por pedofilia.
- Apanhei um pedófilo! – gabava-se ela, orgulhosa.