Eu, assassino
Vivia eu na zona das Antas, bem perto do desaparecido estádio.
Andava na 3ª classe.
Um dos meus colegas era o Renato, filho único do Sr. Serafim e da D. Laura que viviam bem pertinho da escola.
Esta família era bem nossa conhecida pois costumava ir veranear para Vila Praia de Âncora, alojando-se no hotel de minha tia Bela (na altura pensão).
Uma outra família do Porto, a do Sr. Oliveira, bastante mais íntima, também costumava ir a banhos para lá.
Nós, porque minha mãe era natural dessa vila piscatória situada dezasseis quilómetros a norte de Viana do Castelo, obviamente. Não só no verão mas no Natal, na Páscoa, enfim, sempre que havia oportunidade. Nós éramos: o narrador, quero dizer, eu, meus pais e minha irmãzita dois anos mais nova.
E ainda o meu primo Zé, segundo filho da tia Bela.
Eis o conjunto de protagonistas principais desta história.
Chegados a este ponto, não quero deixar de vos chamar a atenção para dois aspectos.
O primeiro, o de esta narrativa ser absolutamente verídica, inclusivamente os nomes utilizados. Fiz essa opção, desta vez.
O segundo, é que se estão a contar com uma novela policial, bem podem tirar o cavalinho da chuva. Nesse tipo de literatura o assassino só se descobre no fim, depois de o autor ter posto o leitor a suspeitar de quasi todos os personagens. Não posso deixar de recordar os imensos romances que li da famosa Agatha Christie em que o Hercule Poirot ou a Miss Marple, nomeadamente, me faziam só largar o livro depois de ter chegado ao fim.
Mas, neste caso, não há nenhum suspense. Já sabem quem é o assassino.
Sou eu!
Vamos então à história propriamente dita:
Durante uma certa semana, o Renato não apareceu nas aulas. Estará doente, pensei. Chegou-se a sexta-feira e, mal chego ao edifício escolar, começo a ouvir:
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
Logo fiquei bem aborrecido pois, saber assim de supetão da morte de uma pessoa conhecida, e sobretudo com nove anitos, não deixa de ser um tanto traumatizante.
A aula decorreu de forma um pouco esquisita, pelo menos foi o que me pareceu e, terminadas as lições do dia, fui para casa almoçar.
A minha mãe abre-me a porta e eu disparo de imediato:
- Ó mamã! Morreu o pai do Renato!
- O Sr. Serafim? Não me digas! Como é que soubeste?
- Toda a gente na escola falava disso.
- Coitado! E de que é que morreu?
- Ouvi dizer que tinha sido de leucemia – apliquei-me a dizer uma palavra tão cara e que me dera algum trabalho a decorar.
- Ah! Realmente ele sempre teve uma cor muito malicenta – comentou, inteligentemente, a mamã. Passados uns minutos chega o meu pai.
- Ó rapaz! E sabes quando é que ele faleceu? – perguntou-me ele.
- Ouvi dizer que na 5ª feira. E o enterro foi hoje de manhã.
- Então já foi o funeral! Agora só nos resta ir apresentar as condolências à viúva – decide rapidamente o papá.
- E temos de avisar as pessoas – decide, de novo rapidamente, como era seu hábito.
E assim, a infausta notícia, ao início da tarde de sexta-feira propaga-se velozmente.
Telefonema para aqui, telefonema para ali, ficou combinado que no domingo, depois do jogo do Porto, o Sr. Oliveira referido no início viria a nossa casa, bem como o meu primo Zé, que estava a estudar Economia (melhor seria chamar-lhe Gastadoria), vindo este, como habitualmente, almoçar connosco.
E assim chegamos a domingo.
Pouco antes da hora de comer, toca a campainha.
É o Zé. Grande calmeirão, um verdadeiro senhor-de-não-te-rales, que quando ficava atrapalhado gaguejava um pouco.
Aberta a porta, diz ele:
- Sabem que ontem à tarde ia morrendo de susto? – solavanqueou .
- Mas porquê? – pergunta o pai.
- Vi o morto a passear em Santa Catarina – desabafa o coitado, ainda visivelmente afectado pela visão de um morto-vivo.
- Mas como é possível? Ele está vivo? Tu tens a certeza que ouviste bem? – atira-me o pai com cara de poucos amigos.
- Ouvi! Todos diziam “morreu o pai do Renato”.
- Bom! Vamos tirar isso a limpo. Ó mulher! Chega-me daí a lista telefónica! – ordena o chefe da família.
E passado um pouco, está o meu pai a falar ao telefone com o morto-vivo, arranjando um pretexto qualquer para tão inopinado contacto.
Enfim, estava tudo esclarecido!
Tudo, não! Afinal porque é que toda a malta da escola dizia que tinha morrido o pai do Renato? Isso já seria mistério para eu desvendar.
O resto do dia decorreu com a normalidade de um domingo de futebol. O Porto ganhou, o que era sempre bom para os humores estarem do lado positivo,
Ah…já agora fiquem a saber que o Sr. Oliveira não tinha sido avisado de que o morto afinal estava vivo, pelo que depois do jogo apareceu vestido de escuro e gravata preta.
- Ó amigo! Afinal o Serafim está vivo! – dizia o meu progenitor.
- Como? – balbuciou o Oliveira com a maior cara de parvo que se pode fazer.
E lá lhe contaram a história.
Afinal, a “morte” do Serafim tinha dado azo, não a uma romagem a casa da "viúva", com lágrimas e lamentações, mas a umas boas risadas.
Na segunda-feira, perguntei a uns colegas se o pai do Renato Nuno sempre tinha morrido. Não! Afinal tinha sido o de um outro Renato, de que eu nunca ouvira falar e que vivia numa área um pouco afastada da minha casa, mas que era bem conhecido de muito alunos que viviam para esses lados, embora fosse mais velho e não andasse naquela escola.
Estão agora a perceber como é que eu, durante quasi quarenta e oito horas, fui o “assassino” de um pacato cidadão?